Há quase uma década, a biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes entrou para a história aobatizar a lei que visa combater a violência doméstica contra a mulher. Nove anos depois, a ativista conta que “abriu mão” de sua vida pessoal em razão do assédio. “A gente não sabe o que passa na cabeça de um homem revoltado porque foi preso por uma lei que leva meu nome”. Por outro lado, a recompensa é saber que “outras mulheres estão sendo felizes” graças a sua luta.
Em Curitiba para a 1.ª Jornada Nacional Mulher Viver Sem Violência, a ativista falou sobre as políticas públicas de enfrentamento à violência. Espaços de acolhida para que estas mulheres (muitas vezes em situação vulnerável do ponto de vista emocional) possam denunciar as agressões que sofrem são importantes.
Erradicar a violência contra a mulher passa por uma “mudança de mentalidade”,diz ela. Para isso, seriam necessários investimentos em todos os níveis da educação, “para que a criança já encarasse o respeito ao outro” desde pequena. Confira as respostas de Maria da Penha na entrevista coletiva.
Foi um divisor de águas. Fico feliz em saber que estou contribuindo com a mudança da mentalidade das pessoas. Para a reflexão dos homens, também, porque muitos foram educados de maneira violenta. Eu acho que no momento que o homem percebe estar fazendo com a mulher dele o que foi feito com a sua mãe, ele pode se sensibilizar. Interromper esta cultura.
É verdade, eu abri mão de toda a minha vida pessoal. Eu não tenho mais vida pessoal. Não posso ir ao supermercado, ir ao shopping, porque o assédio é grande. Porque sei que, enquanto as mulheres me amam, muitos homens me odeiam. E não posso me expor. É um cuidado muito grande que as pessoas da minha família e dos movimentos têm. Porque a gente não sabe o que passa na cabeça de um homem revoltado porque foi preso por uma lei que leva meu nome. Não tenho dúvida de que o pior já passei. Então agora eu pelo menos tenho que ser feliz de ver outras mulheres sendo felizes.
Eu acredito que as mulheres que se apropriaram da lei estão acreditando nas instituições e denunciando mais. Mas o que me preocupa são os assassinatos. [Ocorrem] porque não existe a política pública? Não tem onde ela procurar ajuda? Ou porque [a política pública] não está sendo bem feita? Esta mulher denunciou e não foi protegida como deveria? O número de políticas públicas é insuficiente?
A educação é o que leva à transformação de uma cultura. A lei foi criada há 10 anos, mas antes disso, quando houve a condenação do Brasil pela OEA [que responsabilizou o Estado brasileiro por negligência no combate à violência doméstica, em 2001], tinha recomendações de fazer mudanças legislativas e [também] existia uma de investir na educação em todos os níveis para que a criança já encarasse o respeito ao outro, para que o menino encarasse o respeito à mulher. Isso não foi devidamente colocado no currículo escolar. Uma coisa muito positiva foi a prova do Enem. Aqui e acolá já estão investindo no enfrentamento à violência doméstica. Essa jornada [nacional Mulher Sem Violência] trabalha neste sentido. O Instituto Maria da Penha tem um outro projeto que está sendo desenvolvido nas escolas públicas do Piauí que é a “Lei Maria da Penha em cordel”, que transformou a linguagem jurídica em popular. Mais de 40 mil alunos já foram sensibilizados.
Estes equipamentos estão precisando melhorar. Porque se permitiu que estas mulheres estando sob esta proteção e foi assassinada, é muito triste saber isso. Esta mulher coloca a sua esperança na lei, para ter esta proteção e isso não acontece, é triste, é muito triste. Gostaria de falar também de um caso que a gente nunca fala, que são as vítimas invisíveis da violência doméstica. Quantos órfãos estão aí vítimas da violência doméstica? O pai mata a mãe e eles vão ser criados, educados por quem? Quando adultos vão reproduzir o que viram e que ocasionou a sua orfandade? Quando isso ocorre é triste para todo mundo, para o município e as mulheres de maneira geral.
Tudo deve ser feito para que haja conscientização e que o serviço seja oferecido e criado com qualidade. Porque não é fazer de conta, é um caso muito sério, a pessoa dispor, conseguir, se convencer de que deve denunciar porque não há mais condição de convivência com o agressor, e o Estado que deveria fazer um amparo, criar condição para que essa mulher realmente sair daquela situação, criar seus filhos de maneira mais digna, seja assassinada.
Que veio a ajudar, a mostrar que um crime destes é um crime muito mais grave do que um crime que aconteceu na rua, como o de homens que são assassinados na rua por brigas. E a mulher assassinada dentro de casa por quem deveria protegê-la. Claro que tem que ter [a lei do] feminicídio, este homem tem que pegar uma pena maior, ser penalizado.
É lamentável, porque se a denúncia foi feita em 2010 e até agora nada foi feito, com certeza ele utilizou de seus prestígios políticos para segurar este andamento. Se ele conseguiu fazer isso através de seus prestígios políticos é lamentável, tanto em relação a ele, quanto de quem atendeu os seus pedidos de abafar o caso.
Sim, os centros de referência da mulher são exatamente o local e é um dos primeiros equipamentos que foram criados. Fazem com que a mulher seja orientada, entenda que a violência que ela sofre não é normal, que ela não é obrigada a se colocar naquela posição submissa e aceitar. Ela vai ser orientada pelo psicólogo, assistente social e pelo jurídico, que pode orientá-la até a delegacia da mulher. Se ela passar pelo centro de referência, vai denunciar com muito mais segurança e certeza do que ela quer. Aí cabe ao Estado não decepcioná-la.
FONTE: Gazeta do Povo, 24 de junho de 2015