Que o Direito não evolui tão rapidamente quanto as relações sociais, todos sabemos. O mesmo pode ser dito quanto ao fato de o legislador racional não ter previsto todos os cenários fáticos do mundo real. Ambas as situações são compreensíveis e, dentro do possível, manejáveis pelos chamados operadores do direito. O que foge à nossa compreensão é o legislador (ou quem lhe faça às vezes, no exercício de funções atípicas) deliberadamente escolher adotar caminhos que contrariem a evolução social.
Fazemos referência especificamente à Medida Provisória (MP) nº 1.108, de 25 de março de 2022, no aspecto que diz respeito à nova regulamentação do auxílio-alimentação e do Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT). Em que pese a referida MP tenha sido editada sob o pretexto de "otimizar o pagamento do auxílio alimentação previsto na Consolidação das Leis do Trabalho e melhorar a execução do Programa de Alimentação do Trabalhador", ela acabou por trazer insegurança jurídica às empresas e às facilitadoras de aquisição de refeições ou gêneros alimentícios, conforme se verá brevemente na sequência.
Como sabido, referida MP trouxe as mesmas regras para os inscritos no Programa de Alimentação do Trabalhador e para quem não faz uso dos benefícios fiscais do programa. Ou seja, houve uma ampliação das restrições previstas para o PAT para quem não se beneficia dele.
Ainda nos termos da sua exposição de motivos, ela "visa a equiparação na forma de pagamento entre o Programa de Alimentação do Trabalhador e o vale-alimentação previsto na CLT para não gerar desequilíbrio entre as duas políticas, que possuem a mesma finalidade e são operacionalizadas de forma similar quando se trata de contratação de empresas que viabilizam arranjos de pagamento (vale-refeição e vale-alimentação)".
Que a norma tenha trazido nova previsão expressa de que as despesas destinadas ao PAT deverão abranger exclusivamente o pagamento de refeições em restaurantes e estabelecimentos similares, bem como a aquisição de gêneros alimentícios em estabelecimentos comerciais, é medida louvável. Também elogiável a inclusão do §3º no artigo 1º da Lei do PAT que, em nossa visão, reforça a tese das empresas de que os dispêndios com Vale Alimentação (VA) e Vale Refeição (VR) são equiparados pela própria norma que prevê a (super)dedutibilidade das despesas.
Na prática, o que vem ocorrendo há muitos anos é o crescimento da oferta de soluções integradas por empresas que disponibilizam benefícios flexíveis aos empregados de seus clientes, municiando-os com cada vez mais autonomia e experiências personalizadas. Significa, portanto, que as empresas vêm contatando esses prestadores de serviço para que forneçam aos seus empregados documentos de legitimação por meio de carteiras virtuais, oriundos de tecnologia adequada, para utilização de benefícios variados (como auxílio alimentação — nas modalidades VR e VA; auxílio cultura; auxílio mobilidade; auxílio home office, auxílio educação, auxílio cultura, dentre outros).
Na prática, os beneficiários (empregados das empresas contratante) recebem um único cartão físico e, por meio de um aplicativo, podem controlar e movimentar os saldos dos benefícios migrando-os entre essas modalidades conforme suas necessidades. Como regra, até a edição da referida MP, e por preocupação com a legislação do PAT, já não havia a possibilidade de migração dos recursos depositados no VR e no VA para qualquer outra modalidade de benefício.
O objetivo dessa medida era justamente o de combater o desvirtuamento que seria o uso de VA e de VR para realizar aquisições de outras naturezas, não relacionadas à alimentação/refeição.
Em linha com a regulamentação anterior a respeito da matéria, ao mesmo tempo em que a MP não veda o direito de migração dos saldos de VR e VA entre as respectivas carteiras virtuais dos empregados (para utilização em restaurantes, mercados e afins), há previsão expressa no sentido que não pode haver a transferência daqueles recursos para serem utilizados para outros fins.
Segue válida, a nosso ver, a comunicabilidade entre os saldos relativos aos benefícios de alimentação e refeição, ou mesmo sua concessão na modalidade compartilhada, na medida em que são situações que possuem objetivos comuns e estão em linha com as finalidades do PAT, como a garantia da segurança alimentar do trabalhador. Em nossa opinião, até aqui andou bem a MP.
O entrave às relações sociais a que fizemos menção no início de nosso texto veio com o artigo 3º, III e com o artigo 5º da MP [1]. Pela redação daqueles dispositivos, as autoridades fiscais poderão interpretar que houve uma vedação de que todos os demais benefícios flexíveis contratados pelas empresas (como auxílio home office, auxílio cultura, auxílio mobilidade, auxílio combustível) estejam previstos no mesmo contrato e disponibilizados no mesmo cartão em que presentes os benefícios de auxílio alimentação (ainda que haja segregação e controle das carteiras).
Partindo dessa interpretação, ainda haja a trava para que os valores relativos ao VR/VA sejam utilizados exclusivamente para determinada finalidade (utilização em supermercados, açougues, padarias, lojas de conveniência, mercados, lojas de especialidades, praças de alimentação, restaurantes etc.), há grande margem para interpretação de que não se admita que uma única instituição de pagamento concentre todo o pacote de benefícios concedido pelas empresas aos seus empregados em um mesmo cartão.
Trata-se de risco, portanto, de as autoridades fiscais entenderem que a MP veio para vedar a concessão de cartões multibenefícios (cartões que não se destinem única e exclusivamente ao pagamento de refeições ou à aquisição de gêneros alimentícios em estabelecimentos comerciais).
O mero risco da interpretação da norma exposta anteriormente causa insegurança jurídica no mercado, com potencial necessidade de adequação de todos os contratos e, talvez, mesmo a necessidade de que, especificamente em relação aos benefícios de alimentação e refeição, sejam formulados contratos específicos e cartões individuais (no caso de novas contratações), com clara segregação dos demais benefícios cujas finalidades são distintas da aquisição de alimentos e, ou, refeições.
Não se nega que o Direito tenha autonomia para dizer o que deva ser feito. Questiona-se, em contrapartida, até que ponto isso é bem-vindo.
[1] Artigo 3º O empregador, ao contratar pessoa jurídica para o fornecimento do auxílio-alimentação de que trata o artigo 2º, não poderá exigir ou receber: (...)
III - outras verbas e benefícios diretos ou indiretos de qualquer natureza não vinculados diretamente à promoção de saúde e segurança alimentar do trabalhador, no âmbito de contratos firmados com empresas emissoras de instrumentos de pagamento de auxílio-alimentação.
Artigo 5º A Lei nº 6.321, de 14 de abril de 1976, passa a vigorar com as seguintes alterações:
"Artigo 1º As pessoas jurídicas poderão deduzir do lucro tributável, para fins de apuração do imposto sobre a renda, o dobro das despesas comprovadamente realizadas no período base em programas de alimentação do trabalhador previamente aprovados pelo Ministério do Trabalho e Previdência, na forma e de acordo com os limites em que dispuser o Decreto que regulamenta esta Lei. (...)
§4º As pessoas jurídicas beneficiárias não poderão exigir ou receber: (...)
III - outras verbas e benefícios diretos ou indiretos de qualquer natureza não vinculados diretamente à promoção de saúde e segurança alimentar do trabalhador, no âmbito do contrato firmado com empresas emissoras de instrumentos de pagamento de auxílio-alimentação".
Daniel Clarke é advogado tributarista em Mannrich e Vasconcelos Advogados e pós-graduado em Direito Societário pelo Insper.
Revista Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2022-jun-01/daniel-clarke-retrocessos-vale-alimentacao-refeicao