A precarização do mundo do trabalho é o terreno onde se fertiliza o fascismo”. Entrevista especial com Gilberto Maringoni

Segundo o professor, a partir da crise econômica norte-americana dos anos 1980, começam a se intensificar as mudanças no mundo do trabalho, com os trabalhadores perdendo direitos para garantir a rentabilidade do capital, germinando o fascismo contemporâneo

 

Por: IHU e Baleia Comunicação | 26 Março 2024

No dia 25 de fevereiro passado, mais uma vez, a extrema direita mostrou sua força. Em ato convocado pelo ex-Presidente Jair Bolsonaro, foram colocadas quase 200 mil pessoas na rua. A manifestação, organizada com muita “sofisticação política”, foi uma peça teatral com atos e personagens previamente definidos, conforme pontuou Gilberto Maringoni, na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Jornalista e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC), Maringoni esteve presente no protesto e percorreu a Avenida Paulista por mais de uma hora. Segundo aponta, o ato foi construído “de uma maneira muito hábil [...]. foi uma demonstração de sofisticação política muito grande, porque ele foi montado como algo que não é de protesto”.

Nesta entrevista, Maringoni fez uma recuperação histórica da ascensão da extrema-direita e do seu radicalismo, mas deixou claro que este “não é um raio em céu azul”. Para ele, “a extrema-direita vem para disputar o excedente [...] e tem uma função: expressa uma disputa econômica forte. Por isso cresce na Europa e em toda a parte”, explica.

Analisando o fenômeno da extrema-direita de forma mais profunda, o professor observa que é a partir das grandes crises econômicas mundiais que o fascismo avança, visando garantir a rentabilidade do capitalminando os direitos do mundo do trabalho. E assim, encontra na “precarização [dos trabalhadores] um terreno onde se fertiliza o fascismo”.

Durante a conversa, Gilberto Maringoni percorreu diversos temas, entre eles, o bolsonarismo radical, o pedido de “anistia prévia” do Bolsonaro, a conjuntura internacional e não deixou de fazer muitas críticas ao governo Lula III, mas ao final foi enfático: “fora do governo Lula, agora, a alternativa é o caos neofascista”.

Gilberto Maringoni (Foto: ABCD Maior | Wikimedia Commons)

Gilberto Maringoni de Oliveira é jornalista, cartunista e professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), tendo lecionado também na Faculdade Cásper Líbero e na Universidade Federal de São Paulo. É doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2006) e graduado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (1986). 

Autor de vários livros, entre eles A Venezuela que se inventa: poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez (Editora Fundação Perseu Abramo, 2004), Roberto Simonsen – Eugênio Gudin – Desenvolvimento, o debate pioneiro de 1944-1945 (IPEA, 2010) e Angelo Agostini: a imprensa ilustrada da Corte à Capital Federal, 1864-1910 (Devir Livraria, 2011), baseado em uma tese de doutorado.

Confira a entrevista.

IHU – Da vitória apertada de Dilma, em 2014, à vitória apertada de Lula, em 2022, e seguindo até o cenário atual, como a extrema-direita se articulou politicamente e qual seu peso nesses quase dez anos?

Gilberto Maringoni – São dois fenômenos diferentes. Primeiro porque há um intervalo de oito anos e, segundo, porque, em 2014, a extrema-direita não tinha a proeminência de hoje. E, passamos, historicamente, por alguns momentos muito relevantes.

Um deles foi a Lava Jato, uma campanha de desgaste pesada contra Lula e contra o PT. Na verdade, contra a atividade política, que foi propagada como o reino dos espertalhões, da imoralidade e da corrupção  isso pegou muito forte e foi o terreno pelo qual vicejou a extrema-direita.

E tivemos o impeachment da presidenta Dilma [Rousseff], a prisão do Lula e o governo Bolsonaro no meio.

É difícil comparar, embora os números se aproximem. Vamos tentar olhar os números eleitorais, ver as alterações que ocorrem em cada momento, mas eles são muito difíceis. Até porque as forças que impulsionavam o Aécio Neves, mesmo com boa parte delas tendo transitado para a extrema-direita, a disputa colocada não era exatamente a mesma.

A disputa colocada em 2018 se deu porque uma parte expressiva, do que genericamente chamamos de classes dominantes, ou seja, as frações da burguesia agrária – agronegócio –, da burguesia financeira – do que chamamos genericamente de Faria Lima – e do capital internacional se dividiu na disputa de 2022. Claro, sempre que uma força progressista consegue avançar, há uma divisão do outro lado. Mas a divisão agora foi distinta daquela época.

Junho de 2013

Naquele momento [2014] era a quarta candidatura do PT que disputava a eleição, tínhamos acabado de sair de 2013, cuja interpretação não temos clara até hoje. Digo isso porque, se pegarmos a pesquisa DataFolha de março de 2013, a Dilma tinha 65% de aprovação – as movimentações começaram no final de maio e tomaram o mês de junho. No período, a popularidade dela cai em torno de 20%, parecia que ela estava morta policialmente, mas ela consegue dar a volta por cima, se mostrar competitiva em 2014 e vencer a eleição por pequena margem.

Houve aquele choque social e político, repito, cuja interpretação não está dada, embora tenhamos várias hipóteses, não está fechada e não existe um consenso do que aconteceu ali. Com os indicadores de crescimento econômico, de pleno emprego e sensação de bem-estar razoavelmente positivos.

Agora, com o governo Bolsonaro, a partir do resultado e dos mortos na pandemia, a partir da segurança para os investidores do capital nacional e do internacional houve uma hesitação. Embora esses setores das classes dominantes – agro, capital financeiro, capital internacional – apreciassem a política do Paulo Guedes, a conduta política do Bolsonaro colocava uma instabilidade muito forte na conjuntura, o que gerava uma insegurança quanto ao futuro. Ter a propagação de um golpe de estado não é brincadeira para o mundo dos negócios, para a estabilidade política e para quem vai investir. Então, o Bolsonarismo tornou-se disfuncional.

A partir desse contexto, houve essa rápida ressurreição do Lula, as suas acusações foram muito questionadas pelo Supremo [Tribunal Federal], foram retiradas acusações e seu julgamento foi praticamente anulado e ele pode se colocar como candidato competitivo novamente. Isso foi uma movimentação das camadas dominantes e, a partir daí, formou-se um pacto, uma frente ampla para a eleição do Lula.

A frente ampla [em 2022] foi a convergência de vários setores burgueses das classes dominantes em torno da candidatura Lula – Gilberto Maringoni

Convergência burguesa

Muita gente acha que a frente ampla é Lula + Alckmin + Simone Tebet. Isso é a parte visível de algo muito mais profundo que aconteceu na sociedade brasileira, que foi a convergência de vários setores burgueses das classes dominantes em torno da candidatura Lula. O Alckmin e a Tebet eram a expressão de parte do que estava acontecendo, de uma movimentação mais profunda. O capital financeiro, que genericamente chamamos de “Faria Lima”, começa a se descolar do bolsonarismo e começa a se dividir no começo do segundo semestre de 2022.

Houve um manifesto assinado por várias personalidades e muitos empresários, foi lançado em agosto na Faculdade de Direito de São Francisco, em São Paulo, que se chamava Carta aos Brasileiros, em referência à Carta aos Brasileiros lançada no mesmo lugar. Um local emblemático da luta pela democracia, não só porque em 1977 houve o lançamento de uma outra carta aos brasileiros liderada pelo jurista Goffredo Carlos da Silva Telles e que ensejou uma frente ampla contra a ditadura. Mas, nessa carta [2022] uma parte expressiva do PIB subscrevia.

Em setembro, quatro ex-ministros ou figuras proeminentes do governo Fernando Henrique Cardoso – Edmar BachaPedro MalanArmínio Fraga e Pérsio Arida – lançaram uma carta apoiando Lula. A Carta aos Brasileiros não era um apoio explícito ao Lula, era uma defesa da democracia. Esse sinal diz que uma parte do capital financeiro se desloca para Lula, o agronegócio investia com a Simone Tebet, mas sempre alguns pontos de contato com Lula e tivemos, desde o final do primeiro semestre de 2022, um sinal claro do governo Biden que não apoiaria uma aventura golpista no Brasil.

 

Leque de forças

O que conformou um leque de forças, uma parcela das Forças Armadas e que depois se consolidou no governo de transição, quando todas as áreas do governo tiveram equipes de transição – de Bolsonaro e Lula – para fazer a passagem de governo.

A única área que não houve transição foi a Defesa, porque ela queria continuar a ser o que era e o que sempre foi, um quisto do Estado. Mas, as Forças Armadas também acabaram por se conformar com o fracasso do golpe, não porque existam generais legalistas no alto comando – o que não consigo enxergar até hoje no alto comando. Mesmo [Marco AntônioFreire Gomes, que é tido como um dos “cagões”, nas palavras do Braga Neto, não dá para chamar de legalista, ele não embarcou no golpe, mas legalista é o sujeito que faz carga conta.

Houve essa situação das Forças Armadas e ficou claro na campanha eleitoral algum tipo de acordo com a Globo. O comportamento jornalístico da Globo durante a campanha foi correto, não houve nada de semelhante àquilo que aconteceu em 1989 com a edição de programas e debates, na televisão em especial, tendenciosa.

É difícil comparar 2014 a 2022 porque 2022 tem essa especificidade: a conformação dessa frente ampla entrou em choque com a extrema-direita.

É difícil comparar 2014 a 2022 porque 2022 tem essa especificidade: a conformação dessa frente ampla entrou em choque com a extrema-direita – Gilberto Maringoni

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O que surpreende em 2022? Não é a amplitude da frente do Lula só, embora isso seja importante, é a força que a extrema-direita adquiriu. O Bolsonaro aumentou sua votação do primeiro para o segundo turno, a extrema-direita é uma tendência arraigada na sociedade brasileira, com todas as acusações que o Bolsonaro tem, ele continua forte. Nós vimos no dia 25 de fevereiro a força que a extrema-direita tem: colocaram quase 200 mil pessoas na rua, em São Paulo.

São momentos distintos, a extrema-direita tem muita força e tem muita força porque polariza e radicaliza posições na sociedade.

As forças agrupadas em torno do Lulismo ou, principalmente, o governo Lula busca apaziguar ou colocar panos quentes numa conjuntura radicalizada.

Isso é um problema sério cuja expressão é a tentativa do Lula de fazer um apagamento do que foi o Golpe de 1964 nos 60 anos daquele evento.

IHU – Em seu artigo sobre a manifestação de Bolsonaro na Paulista em 25 de fevereiro, escrito para A terra é Redonda, o senhor comenta sobre sua experiência em meio à extrema-direita. Observando o fenômeno, quais são as principais semelhanças e diferenças entre a extrema-direita e a esquerda?

Gilberto Maringoni – As diferenças são inúmeras. Na questão democrática, no trato da institucionalidade, em como o Bolsonaro atacou as instituições; e não é só o Bolsonaro. Quando pensamos no bolsonarismo, naquelas figuras como o ex-ministro da educação, Abraham Weintraub, o general Augusto Heleno, que vocalizavam publicamente ataques às instituições, e o Eduardo Bolsonaro; isso é muito claro. A diferença no trato democrático é da água para o vinho.

Se formos nominar no terreno, eles radicalizam nessa questão, na questão dos costumes, do que genericamente se chama costumes, que é muito mais do que costumes. Eles radicalizam se colocando contra direitos, direitos humanos.

Ataque a direitos

O discurso da Michelle Bolsonaro na Paulista é basicamente um discurso contra o estado laico, é muito mais do que costumes, é muito mais do que falar que o povo cristão é isso ou aquilo. Ele ataca uma das bases da República – quando eu falo bases da República, eu não estou usando retórica. A primeira Constituição da República, em 1891, ou seja, dois anos depois da Proclamação, colocava explicitamente a separação entre Igreja e Estado, a proibição de financiamento por parte do estado a templos e a igrejas a de qualquer tipo – ela faz esse ataque.

O ataque aos direitos reprodutivos da mulher é um ataque aos direitos, não é uma questão de ataques a comportamentos. O ataque à comunidade LGBTQIA+ é um ataque a direitos. O discurso racista que o Bolsonaro exibiu na campanha e depois, de maneira velada ou não, vai aparecendo aqui e ali durante o seu mandato, é um ataque a direitos. Então, nessas questões que são de cunho democrático, tem uma grande diferença.

Mas o que ocorre é que o bolsonarismo radicaliza e radicaliza no conteúdo, que é o ataque a direitos, e na forma. Xinga-se com palavras de baixo calão Ministros do Supremo [Tribunal Federal,] que fulano tinha que ser preso e outro tinha que ser enforcado etc. Isso é histórico na extrema-direita: o fascismo fez isso na Itália nos anos 1920; o nazismo fez nos anos 1930. Assim, incute-se na sociedade um grau de tensão e tendência à violência muito forte.

O programa econômico do Lula é um programa econômico do Pedro Malan no governo Fernando Henrique, do Antonio Palocci no primeiro governo Lula, do Joaquim Levy no segundo governo Dilma, do Henrique Meirelles no governo Temer e do e do Paulo Guedes no governo Bolsonaro – Gilberto Maringoni

Lula, à direita

Do lado do lulismo, essa diretriz do Lula – de não incentivar nenhuma comemoração dos 60 anos do golpe [de 1964], mas também tentar impedir qualquer crítica – é um recuo brutal. Se formos pensar, o Lula se coloca à direita do Ulisses Guimarães na aprovação, depois da sanção da constituinte, em que ele faz aquele histórico discurso, em que disse ter ódio e nojo da ditadura; Lula está muito à direita disso.

Lula está à direita da Dilma e à direita do próprio Lula, em várias manifestações democráticas ao longo da sua carreira. Por que isso acontece? Por uma percepção do governo de que a situação precisa ser pacificada com as Forças Armadas. E a maneira com que se vê para pacificar não é de enfrentar o problema, mas de cobri-lo para colocá-lo embaixo do tapete; há um recuo nisso.

Há um recuo no programa econômico do Lula. Sendo rigoroso em termos econômicos – espero ser bem entendido em relação ao que vou falar –, o programa econômico do Lula é um programa econômico do Pedro Malan no governo Fernando Henrique, do Antonio Palocci no primeiro governo Lula, do Joaquim Levy no segundo governo Dilma, do Henrique Meirelles no governo Temer e do e do Paulo Guedes no governo Bolsonaro.

Mas vão falar que o Paulo Guedes estava num governo de extrema-direita fascista, mas o Levy era um banqueiro. Sim, com nuances – isso é muito importante ressaltar – mais ou menos acentuadas. E qual é o programa? O programa é: “eu tenho que conter os gastos públicos, porque isso vai trazer segurança ao investidor, dando segurança ao investidor, haverá investimento, empresário e capital estrangeiros virão para cá sabendo que não vai haver mudança de regras abruptas, pacotes e essa previsibilidade pode-se configurar num, pode possibilitar um novo ciclo de desenvolvimento”.

 

Fada da confiança

Tudo bem, isso é o que Paul Krugman, prêmio Nobel de economia, definiu como a “fada da confiança”. Não há nenhuma explicitação objetiva de que você, tendo confiança, vai investir. O empresário investe se o mercado está em expansão, se tem demanda, se o que ele investir para aumentar a capacidade instalada, produtiva ou expandir sua fábrica ou seu negócio vai encontrar demanda. Essa que é a questão!

Então faz uma conduta econômica em que coloca lei de responsabilidade fiscal, teto de gastos ou novo arcabouço fiscal e essas questões têm como objetivo reprimir e restringir a demanda.

Quando pensamos no que o governo Bolsonaro fez, ao aprovar a independência do Banco Central, o que implicou numa atual privatização da política monetária. Ou seja, os bancos têm poder sobre a taxa de juros, que vai incidir na taxa de câmbio e nas reservas cambiais – o que está praticamente privatizado hoje.

A outra parte da política econômica, que é a política definida pelo Ministério da Fazenda, que é a política fiscal, acaba também tendo um torniquete imposto pelo mercado. Basta ler colunas de economistas ligados ao sistema financeiro, como Luiz Carlos Trabuco, ex-presidente do Bradesco, elogiando e tecendo louros ao arcabouço fiscal e às restrições fiscais.

Portanto, tem uma continuidade na política monetária e na política fiscal – na política econômica, genericamente falando.

Temos um governo que recua em várias esferas da linha, enquanto a extrema-direita radicaliza e radicaliza na forma, nos valores, na moral e nos direitos. A sensação que existe é que nós temos alguém aguerrido de um lado e temos um governo que não se contrapõe – Gilberto Maringoni

Não há atritos com os militares, com a Globo, não faz uma política de democratização, por exemplo, da Empresa Brasileira de Comunicação – EBC. Logo, temos um governo que recua em várias esferas da linha, enquanto a extrema-direita radicaliza e radicaliza na forma, nos valores, na moral e nos direitos. A sensação que existe é que nós temos alguém aguerrido de um lado e temos um governo que não se contrapõe.

Brasil polarizado

A história de que existe uma polarização na sociedade brasileira – esse é o grande problema da sociedade – precisa ser examinado com muito cuidado. Existe uma polarização eleitoral, eu quero Bolsonaro, eu quero Lula, eu quero [GuilhermeBoulos, eu quero candidato do Bolsonaro, Ricardo Nunes em São Paulo. Mas, quando observamos as camadas mais profundas das propostas, não encontramos uma polarização real nessas questões. Na política econômica, como eu disse, existem nuances, mas não existem as propostas. Na questão do trato com militares, não existe uma mudança significativa, a não ser, claro, que Lula não incentiva o golpe, enquanto o Bolsonaro incentiva.

A polarização está muito mais na superfície e acaba gerando, como existe uma contraposição, bolsonarismo versus lulismo – isso existe – e se ela é na superfície, a consequência dessa situação é a seguinte: quando tem uma polarização política, há uma posição sobre política econômica. Há a pretensão de uma posição mais expansiva, de aumento do investimento e do gasto público para possibilitar crescimento da economia.

Já em uma posição contrária, de mais austeridade para impedir a expansão dos gastos, dá para discutir e perceber numa racionalidade do debate, que um dos lados tem razão em uma série de pontos que outro pode divergir. Um lado pode incorporar as concepções e talvez ambos tenham a mesma sensação, sendo possível chegar a algum tipo de entendimento na política econômica ou na política dos militares. A política é feita disto, de entendimentos e possibilidades dentro do debate.

Polarização despolitizada

Agora, a polarização de grupos que estamos vendo agora, meramente eleitoral, tornou-se quase como uma briga de torcidas. E a briga entre torcidas não é algo da política, é algo que vem da adesão ao líder, da simpatia que eu tenho com determinado grupo de pessoas ou partido, e ela não permite mediação. A briga de torcida, assim como a briga de torcida real no estádio de futebol, começa com a briga de torcidas civilizada, parte para agressão verbal e vai para a violência no limite. Para essa polarização despolitizada não existe mediação, ela pressupõe a violência.

Se o lulismo retirar as camadas superficiais dessa suposta polarização, vamos encontrar aquilo que eu disse: propostas que não são iguais na economia, nos militares e no trato com os meios de comunicação – não são iguais, são convergentes. Portanto, se são convergentes, o lulismo tem políticas semelhantes – Gilberto Maringoni

Convergência de propostas

Por isso é que o Bolsonaro, para fazer valer o seu ponto de vista, no limite, ele vai para o golpe. É ele que está polarizando a sociedade. Por isso, o golpe é algo intrínseco dessa lógica da extrema-direita, da polarização despolitizada, que eu não entendo por que o lulismo aceita. Aliás, eu entendo. Porque se for retirar as camadas superficiais dessa suposta polarização, vamos encontrar aquilo que eu disse no início: propostas que não são iguais na economia, nos militares e no trato com os meios de comunicação – não são iguais, são convergentes. Portanto, se são convergentes, o lulismo tem políticas semelhantes.

Tem que ter muito cuidado, pois eu não estou dizendo que o bolsonarismo é semelhante ao lulismo. Eu estou dizendo que algumas políticas, com a política econômica, a lassidão que o Lula tem com os militares e a relação os grandes monopólios de comunicação não tem diferença. Assim como com o Fernando Henrique [Cardoso], com o [MichelTemer ou com governos mais à direita.

Por isso que se torna uma situação muito incômoda. Para incentivar essa polarização, a maneira como a direita faz, é ir para o ataque e para o ódio. O ódio nas redes sociais é isso. Não tem política, não estou fazendo disputa política, eu estou fazendo uma disputa de grupos de torcida.

O Lula coloca o capital privado na condução dos serviços públicos – Gilberto Maringoni

Nuances

Quero deixar claro que o bolsonarismo não é igual ao lulismo, que não tão eles são diferentes, mas eu estou dizendo que “com nuances” – é muito importante esclarecer –, a política do Paulo Guedes está numa grande lógica, que é a mesma em que está o lulismo e o Fernando Henrique. O Paulo Guedes é de extrema-direita, mas ele não está fora de uma grande política de austeridade.

O governo Lula não faz privatizações explícitas, como o governo Bolsonaro fez, colocando refinaria ou a Eletrobras à venda. Mas o governo [Lula] faz uma política privatista quando diz que no novo arcabouço fiscal, o investimento público vai ser 70% das receitas correntes líquidas, ou seja, a arrecadação dos impostos.

Quando diz que vai ter só 70% do que se arrecada nos impostos, pode-se arrecadar qualquer montante, que isso não vai se transformar numa proporção igual de investimentos. É o que o Haddad fala: o investimento virá da iniciativa privada. Como o investimento vem? Via financiamento do BNDES para obras de infraestrutura para obras na saúde e na educação que, ao fim e ao cabo, implicam privatização desse serviço. Ou seja, é uma privatização mais sofisticada, mas é colocar o capital privado na condução dos serviços públicos.

IHU –  Teria o PT se voltado à direita?

Gilberto Maringoni – Evidentemente o PT não é à direita. O PT é um partido que tem origem no movimento popular, com várias correntes e visões dentro partido. O PT é hoje um partido de centro democrático, com algumas figuras à esquerda, de modo algum é um partido de direita.

De 2008 em diante temos uma década em que a disputa pelo excedente acirrou-se muitíssimo por conta das instabilidades econômicas decorrentes de 2013 - Gilberto Maringoni

 

IHU – Aliás, estamos tratando da oposição à esquerda como “extrema-direita”. Mas o que aconteceu com a direita brasileira? Esse espaço ficou vazio? Se não, quem ocupa essa posição política? 

Gilberto Maringoni – Com a direita, a partir da crise de 2008, houve uma queda na rentabilidade do capital, nas taxas de lucro. Houve a quebra do https://www.ihu.unisinos.br/noticias/509187-lehman-brothers-as-24h-que-mudaram-o-ocidente-rico&sa=U&ved=2ahUKEwjjgvfurJCFAxVVpZUCHS52ByoQFnoECAcQAg&usg=AOvVaw0zqJqqPDawFVY29itorLso&arm=e" target="_blank" rel="noopener noreferrer" style="margin: 0px; padding: 0px; list-style: none; color: rgb(252, 107, 1);">Lehman Brothers, uma retração forte na economia. Os estados nacionais, para fazer frente a essa retração, tiveram que investir pesado, a começar pela economia brasileira. O Lula aumentou o investimento público para 6,5% do PIB – o novo arcabouço fiscal coloca em 2,5%. A China que os Estados Unidos aumentaram o investimento, assim como todo mundo, para que as empresas e as economias nacionais inteiras não quebrassem.

Esta década, de 2008 em diante, quando a extrema-direita volta a assumir peso, tornou-se uma década em que a disputa pelo excedente, ou seja, a disputa pela distribuição de riqueza na sociedade, acirrou-se muitíssimo por conta das instabilidades econômicas decorrentes de 2013.

Houve em 2013 e 2014 um repique da crise, que foi a queda do preço das commodities e a queda acentuada do preço do petróleo – cujo preço do barril Brent, o mais puro, havia chegado em 2007 a mais de 140 dólares; em 2013 o preço cai para algo em torno 30 a 32 dólares. Isso impactou seriamente toda a economia de commodities dos países da periferia, gerou crises, gerou crise econômica no governo Dilma e na Argentina, onde possibilitou a eleição do governo [MauricioMacri.

Em grande parte, a crise do segundo governo Dilma pode ser explicada por essas instabilidades.

Quando há esse repique da crise de 2008 em 2013 e 2014, a direita e a extrema-direita vêm com uma solução a ponta do lápis: aumentar a informalidade do trabalho, reduzir a massa salarial nos países e retirar direitos. Isto é, aumentar a exploração do trabalho –Gilberto Maringoni

 

Extrema-direita: a fada da rentabilidade capitalista

A eleição do [DonaldTrump se dá em cima dessas instabilidades decorrentes de 2008, ou seja, quando há esse repique da crise de 2008 em 2013 e 2014, a direita e a extrema-direita vem com uma solução a ponta do lápis: aumentar a informalidade do trabalho, reduzir a massa salarial nos países e retirar direitos. Isto é, aumentar a exploração do trabalho – para falar no linguajar antigo e claro.

rentabilidade das empresas brasileiras, não só as empresas financeiras, mas também as empresas produtivas, a reforma trabalhista do Temer em 2017, reduz a massa salarial – eu vi os indicadores do Ipea e do IBGE e houve uma retração.

Nos governos Lula e Dilma, houve um aumento lento, mas seguro da massa salarial, ou seja, tudo o que se paga em termos de salário no país em relação ao total do Produto Interno Bruto aumentou nos governos petistas. A partir do governo Temer começa a haver uma queda, uma redução da massa salarial, um arrocho salarial muito forte nos governos Temer e Bolsonaro. O que aumenta a rentabilidade das empresas mesmo sem aumentar a demanda, a venda e o mercado interno. Portanto, a rentabilidade do capital aumentou. A crise das commodities em 2013 e 2014 vai mais ou menos até o final de 2015, 2016, e coincide com a subida do Temer.

A extrema-direita expressa uma disputa econômica forte. Por isso cresce na Europa e em toda a parte – Gilberto Maringoni

 

Raio em céu azul

extrema-direita vem para disputar o excedente, não é um raio em céu azul. A extrema-direita não apareceu porque os abortistas estão fazendo campanha ou porque a política de cotas está bombando na universidade. Enfim, não é por isso, é porque existe e tem uma função: expressa uma disputa econômica forte. Por isso cresce na Europa e em toda a parte.

Se não analisarmos esse fenômeno nas suas causas mais profundas, ficaremos vendo a extrema-direita como expressão de algumas lideranças carismáticas, como Viktor OrbánTrump e Bolsonaro, e não entendemos o que está acontecendo por baixo. Essa disputa da extrema-direita com o centro – vou colocar como centro democrático o centro progressista e um pedaço da esquerda – ganhou impulso nesses últimos anos.

Eleições portuguesas

As eleições de Portugal nesse final de semana [10 de março de 2024] são muito curiosas. Embora estejamos falando de Brasil, deve ser importante dar essa deslocada para Portugal, porque há um fenômeno – eu estou tentando escrever sobre isso agora, tentando entender o que aconteceu.

Quem ganhou foi a Aliança Democrática, essa coligação nucleada pelo PSD, pelo partido de direita. No entanto, olhando as últimas eleições parlamentares portuguesa de 2022, os partidos que hoje compõem essa Aliança tiveram 77 deputados; ontem eles elegeram 79 – dois a mais. O Partido Socialista – PS, do António Costa, que nucleava o governo, elegeu 120 em 2022 e agora elegeu 77 – dois a menos que a Aliança Democrática.

Lavajatismo português

O grande fenômeno da eleição portuguesa é o Chega!, a extrema-direita, que elegeu 120. O PS caiu para 77. O Chega!, em 2019, elege um único deputado, que é o André Ventura, ex-radialista e professor de direito, e fica com um deputado no parlamento em 2019. Em 2022, com uma campanha ruidosa, moralista e contra a corrupção, eles chegam a 12. Na crise que resultou na renúncia do primeiro-ministro António Costa e numa situação em que o Ministério público adquiri ares da “República de Curitiba”, ou seja, um “lavajatismo português”, o Chega! faz uma campanha ruidosa contra a corrupção, malversação de gastos públicos, moralidade, costumes, contra a imigração e pulam de 12 para 48; em dois anos, eles quadruplicam. Eles são vencedores das eleições, embora sejam a terceira força.

Qual é o deslocamento que está acontecendo dentro da sociedade? A sociedade portuguesa viveu nos últimos dois anos os efeitos da guerra na Ucrânia com o encarecimento de combustíveis e do gás, que impactou no preço dos alimentos, em boa parte importados de outros países da Europa, que também sofrem esses efeitos da inflação provocada pela guerra.

E a extrema-direita vai para cima, cresce. Embora o governo português tenha tido ganhos reais de salário no último ano e a inflação. Mas a disputa política em cima de mínimos detalhes da conjuntura e de pregar que “nós estamos no caos e precisamos sair do caos” em cima de um centro democrático ou de um centro esquerda inerte, o que fica na lassidão ou que fica querendo contemporizar, como o governo Lula faz, abre espaço para esse sistema direito.

Caso argentino

Algo semelhante se deu na Argentina, com o governo Alberto Fernández. Ele não é mau governo, mas também não é um bom governo; é um governo que teve uma inflação de 140%. A Argentina tem particularidades. Como é que se coloca numa situação de inflação de 140% o ministro da economia desse governo como candidato? É pedir para perder, né?!

Então a extrema-direita radicaliza, mas não é um raio em céu azul, como eu disse, existe uma disputa pela repartição do excedente, ou seja, pela repartição das riquezas, num quadro em que a rentabilidade – o dinamismo da economia – tende a se retrair, especialmente nos últimos anos, com o quadro da pandemia e da guerra na Ucrânia.

IHU – A extrema-direita tem uma narrativa que costuma ser contra avanços sociais e classifica como vitimismo pautas das minorias políticas. Ao mesmo tempo pede “pacificação” e descreve seus partícipes como “perseguidos”. Como compreender essas contradições?

Gilberto Maringoni – A primeira coisa, além do que eu falei, é compreender as modificações no mundo do trabalho. Nós fomos, ao longo do século XX e da reorganização dos estados nacionais depois da crise de 1929 e da Revolução Russa, mas em especial nos Estados Unidos, isso se expressa em vários estados ao redor do mundo. A partir de então passamos a ter uma intervenção maior do estado na economia, em especial nas áreas de investimentos, no desenvolvimento, nas obras de infraestrutura, na regulamentação do capital e na regulamentação do trabalho.

New Deal

O caso clássico é o New Deal, o programa básico dos governos Roosevelt de 1933 a 1944, em que o estado vai se tornar o grande investidor e o grande planejador da economia. Para isso ter efeito, a força de trabalho, ou seja, os trabalhadores têm que estar organizados em sindicatos, não para reivindicar, mas para disciplinar.

Os dirigentes comunistas dos sindicatos foram perseguidos no governo Getúlio [Vargas] aqui, nos governos de direita e extrema-direita na Europa. Os governos Mussolini e Hitler foram interventores na economia, pesados, e de outra maneira, o governo soviético nos anos 1930 também, pois foi o governo dos planos quinquenais. Enfim, nós estávamos acostumados a lidar com os trabalhadores como categorias profissionais, como tem que existir.

Os trabalhadores são coletivos que estão em fábricas, em grandes unidades produtivas, têm interesses comuns, de classe e de categoria. Então, para isso é preciso criar a reivindicação, salário-mínimo nacional nestes países, o preço da hora trabalhada tem que ter um piso, um patamar mínimo. Nos países europeus passa a haver também demandas atendidas por educação, saúde, e estado de bem-estar depois da Segunda Guerra – que é uma longa história que vou detalhar aqui. Mas enfim, os trabalhadores formam também grandes corporações.

Se as grandes empresas formam grandes corporações do capital, passam a existir as centrais sindicais, poderosas entidades que também são corporações do trabalho para enfrentar o capital até os anos 1980, quando a crise da dívida e a crise da economia americana nos anos 1970 provoca uma retração disso.

A partir da crise da dívida e da crise da economia americana os trabalhadores começam a perder direitos para garantir a rentabilidade do capital – Gilberto Maringoni

 

Garantindo a rentabilidade do capital

A partir de então começa a haver mudanças no mundo do trabalho, em que os trabalhadores começam a perder direitos para garantir a rentabilidade do capital. E o que é atingido fortemente é o movimento sindical com a reforma trabalhista do Temer, que derruba basicamente o financiamento dos sindicatos e a capacidade de reivindicação dos sindicatos é atingida de maneira muito pesada. Isso se dá em outros países também.

Com isso, passamos a ter o trabalhador individual, o trabalhador passa a ser o empreendedor. Passamos a ter o discurso de que para as pessoas mudarem de vida, elas têm que ser empreendedoras. O que significa que ela tem que “se virar”, não pode “brigar contra o capital” e contra quem estava teoricamente a explorando. De forma que o concorrente dos empreendedores é o colega que está dirigindo o outro Uber, é o entregador do outro pacote encomenda de alimento no IFood, é o sujeito que está como pessoa jurídica no emprego em disputa.

 

Precarização: terreno fértil do fascismo

Assim, cria-se entre os trabalhadores um mundo de indivíduos disputando entre si o trabalho, o resultado e os ganhos do trabalho. Uma situação que deteriora a visão da sociedade como um conjunto, não só como indivíduos, mas como um conjunto de indivíduos com interesses convergentes. Essa erosão no mundo do trabalho – a precarização – é o terreno onde se fertiliza o fascismo.

Não é à toa que os estímulos de votação, de intenções, de desejos, de anseios e afetos que se recebem vêm nas redes sociais. Elas vêm no Telegram e no TikTok para públicos específicos, quase para indivíduos específicos, baseados em pesquisas. Assim, é possível saber, por exemplo, que no Rio Grande do Sul, os trabalhadores em comunicação têm um determinado anseio na precarização para si, os de Santa Catarina são outros, os vidraceiros, os padeiros e os borracheiros são outros. Tem ainda a penetração das igrejas com a teologia da prosperidade. Enfim, há um incentivo à disputa individual para cada um se dar bem.

 

Se o capitalismo concorrencial entre as grandes corporações foi eliminado, não tem concorrência entre as empresas que dominam o sistema de energia aqui no Brasil, por exemplo. O país foi retalhado e tem empresas específicas em cada região, são monopólios privados. Contudo, está estabelecida uma extrema-concorrência no outro polo, no mundo do trabalho. Ou seja, tem um imenso poder em cima e um poder fragmentado embaixo; uma regulação estrita em cima, em que os preços, por exemplo, de energia são aprovados por instâncias do estado – as agências reguladoras – e embaixo não tem linha de negociação.

A pregação contra o diferente, contra o sujeito que não professa a mesma religião e o que não pertence à comunidade, torna-se combustível para o fascismo – Gilberto Maringoni

 

A base da extrema-competição é que vai fazer com que, além de fazer com que não reconheça a identidade dos meus semelhantes como colega e companheiro, vamos ficar mais sensíveis a pregações políticas que dizem: as pessoas estão sendo lesadas porque o imigrante está tomando o seu lugar.

Desta forma, começa o processo de individualização e passamos a ver o outro como um possível inimigo. Claro que não é esse o problema, mas o inimigo se torna “identificável”.

E esse tipo de pregação contra o diferente, contra o sujeito que não professa a mesma religião e o que não pertence à comunidade, torna-se combustível para o fascismo.

Psicologia das massas fascistas

Tem um livro que foi moda nos anos 1960/1970 entre a classe média intelectualizada, e que é facilmente encontrado na rede, que é o livro Psicologia de massas do Fascismo (Martins Fontes, 2019), de Wilhelm Reich – um psiquiatra alemão que viveu nos Estados Unidos. Nos anos 1940 ele escreve esse livro tentando identificar quem é o público do fascismo quem é o indivíduo sensível ao fascismo. O fascismo não é uma ideologia feita para sensibilizar as camadas ricas da sociedade, tem empresário fascista, mas o fascismo tem um potencial de agregação e de sensibilização da frustração social. Então ele examina, na Alemanha, é o fascista é o “Zé ninguém”, é o trabalhador que se sente injustiçado, que não consegue pagar as contas e o aquele que não consegue identificar qual é a origem do seu problema.

E alguém vem e fala que a origem do problema é o imigrante, o Lula que roubou, os políticos, é a casta, como diz o [Javier] Milei. Essa situação é que cria um terreno fértil para o fascismo.

Voltando à sua pergunta, vamos falar da questão do vitimismo e da “perseguição” à extrema-direita.

Bolsonaro chamava de coitadismo. Dizia que era necessário acabar com o coitadismo, que, segundo ele, é a demanda do quilombola, dos Sem-Terra, do sujeito que está fora do mercado e do desempregado.

E agora o Bolsonaro se coloca – e nesse comício da Paulista ficou claro – como vítima de uma "ditadura". A pregação deles é que existe uma "ditadura do judiciário" que persegue, de maneira injusta e inexplicável, quem tenta fazer alguma coisa.

Sofisticação política

Bolsonaro montou o ato do dia 25 [de fevereiro] de uma maneira muito hábil. Tem uma inteligência na montagem daquele ato muito sofisticada. Não sei quem foi, não sei se é o [Pastor SilasMalafaia, o próprio Bolsonaro, não sei se tem marqueteiro. Como eu parto do princípio de que nenhum Presidente da República é burro – as pessoas tendem a falar que o Bolsonaro é um estúpido, mas não é, ele é um sujeito extremamente inteligente. A Presidência da República é uma profissão que não admite imbecil, o sujeito pode ser tosco, pode ser inculto, mas não é imbecil.

O ato foi uma demonstração de sofisticação política muito grande, porque ele foi montado como algo que não é de protesto. O Bolsonaro recomendou nos dias anteriores, nenhuma faixa, placa ou ofensa ao Supremo [Tribunal Federal]. Eu percorri a Avenida Paulista durante mais de uma hora e não havia o que vemos em comícios bolsonaristas – havia isoladamente: a raiva, o sujeito gritando e berrando. Isso me espantou muito.

A Presidência da República é uma profissão que não admite imbecil, o sujeito pode ser tosco, pode ser inculto, mas não é imbecil – Gilberto Maringoni

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Peça teatral

O segundo ponto é que o comício foi montado como uma peça de teatro com tempos e papéis muito definidos para cada orador. Então falaram ali seis ou sete oradores falaram, entre eles, o Valdemar da Costa Neto, o Nikolas Ferreira, mas a base do ato foi a Michelle Bolsonaro, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, o Silas Malafaia e o Bolsonaro. O ato durou uma hora e 40 minutos. Não havia conversa jogada fora, não teve improviso, não teve um locutor falando ou chamando alguém do público para dar uma palavra e parecia que todo mundo ali tinha decorado seu papel.

Primeiro ato: ataque ao estado laico

O papel da Michelle é o da esposa fiel que está com o marido, que cancelou uma viagem para os Estados Unidos nessa hora de sufoco, é de solidariedade e ela abre o ato.

Segundo ato: sucessor político

O segundo jogador significativo, o Tarcísio de Freitas, que tinha papel de anfitrião, mas dava o caráter político ao ato e se apresentava como sucessor do Bolsonaro. Ele elogia o Bolsonaro, mas está claro o papel: ele é o político do ato.

Terceiro ato: chutando os inimigos

O terceiro é o Malafaia, que vai fazer o papel do Bolsonaro, chutando o Supremo e os inimigos. Ele baixa o nível, mas isso fica restrito a ele. Não foi o Tarcísio, não foi a Michelle, não é alguém do mundo político stricto sensu – claro que o que o Malafaia é um político, mas não foi o alguém de um partido. Ele faz, isola e chama para si toda agressão. Não é o Bolsonaro, não é alguém dentro de partido, não é alguém da coligação, é o Malafaia.

Quarto ato: discurso cadenciado

Isso possibilita ao Bolsonaro dar uma desidratada na questão explicitamente política e na questão de agressão. No discurso messiânico-religioso da Michelle. De forma que ele vai contar como foi a vida dele no exército, como foi na infância e vai construir, durante 22 minutos, num discurso muito bem cadenciado para os padrões bolsonaristas – estamos acostumados a ver o Bolsonaro fazer discursos que ele a cada frase ele fala um assunto. Ali era cadenciado, em que o centro era convergir para anistia. Ele não vai pedir anistia para si, mas para aqueles que ele chama de “pobres coitados que estavam em Brasília”. Ou seja, ele é altruísta, não está pensando no seu egoísmo, no seu mundo em particular.

Ele termina de falar isso e diz: também é preciso dizer que nenhuma instância na justiça, que ninguém pode tirar da vida pública alguém sem que haja uma falta muito grave – nesse ponto está falando dele e dos generais, não está explícito. E a anistia que ele pede, o Lula apontou muito bem, é uma anistia prévia, pois não existe condenação.

A anistia que Bolsonaro pede é uma anistia prévia, pois não existe condenação – Gilberto Maringoni

 

Quinto ato: anistia prévia

O que ele faz é o que os militares fizeram com a [Lei daAnistia em 1979, na imposição feita ao Congresso no começo do governo Figueiredo, em setembro daquele ano. Na anistia, os condenados, os presos políticos e os exilados que não tivessem o que eles chamavam de “crime de sangue” e anistia os crimes conexos, anistia previamente os torturadores e toda a cadeia de comando do arbítrio, antes que tivesse qualquer