Opinião
Os direitos dos cidadãos previstos na Declaração de Direitos Humanos da ONU, na Carta da OEA e na nossa Constituição exigiu do Brasil a regulação das relações de trabalho, com a criação de um complexo normativo com: fixação de trocas equivalentes de direitos para que as relações se desenvolvessem de maneira justa, proporcional, digna e saudável qualquer estrutura adotada, permitindo que as empresas escolhessem aquela a ser adotada; e comandos destinados a garantir que as estruturas fossem seguidas, prevenindo e corrigindo erros e fraudes que dessem origem a relações de trabalho injustas/iníquas.
Para garantir a eficácia do complexo normativo, suas regras foram quase todas fixadas à margem do controle das partes envolvidas, precisamente para que se pudesse sustentar a validade de uma relação híbrida pela suposta vontade e anuência do trabalhador. Dentre elas, cabe destacar a regra de impositividade do uso da estrutura empregatícia em relações que tenham subordinação e assimetria (artigos 2º e 3º da CLT), destinada a assegurar que as garantias fixadas no artigo 7º da Constituição fossem sempre observadas nesse tipo de relação.
Embora as empresas possam escolher qual das estruturas será adotada para a relação de trabalho, ao fazê-lo elas ficam legalmente: obrigadas a obter de maneira válida a adesão do trabalhador à estrutura, sem ardis ou coações; obrigadas a cumprir com aquela que foi selecionada, dando ao trabalhador os direitos previstos em lei que ele faz jus na estrutura e proibidas de tornar a relação assimétrica ou subordinada.
A inobservância dessas regras acarreta a nulidade da avença, diante das exigências aplicáveis a qualquer negócio ou ato jurídico, que não pode ser celebrado com vícios na manifestação de vontade de alguma das partes; conter objeto lícito, violar lei imperativa ou promover pactuação de direitos nula ou proibida, o que ocorre quando as trocas equivalentes não são respeitadas ou se utiliza estrutura alternativa numa relação subordinada/assimétrica à revelia do comando impositivo; e/ou ser simulada, aparentando conferir direitos diversos dos reais e/ou contendo declaração, condição ou cláusula não verdadeira e/ou que não será cumprida (artigos 104, 166, 167 e 171 do CC/02).
Como o ordenamento jamais permitiria que alguém fosse regido pelas condições de avença violadora da lei, a sistemática prevê que a comprovada nulidade, alegável por qualquer interessado e declarável de ofício, implica na total prevenção de efeitos jurídicos do ato documentado, vedado o suprimento, confirmação ou convalescência mesmo se solicitado pelas partes, previsto em redundância na esfera cível (artigos 168 e 169 do CC), trabalhista (artigo 9º da CLT) e tributária (artigos 116, 142 e 149 do CTN). O vácuo deixado pela anulação da avença é suprido pelo poder público, que declara e implementa o adequado modo de ser da relação pela aplicação do tratamento jurídico previsto em lei aos atos praticados e futuros (artigo 19, inciso I do CPC/15).
Apesar de sua adequada legislação sobre o tema, o Brasil se vê envolto em crises nas relações de trabalho. Algumas empresas, mesmo após respeitarem as estruturas alternativas e concederem os direitos nela devidos aos trabalhadores, foram surpreendidas por tentativas de imposição da natureza empregatícia à relação com o objetivo de obrigá-las a recolher os tributos ou conceder os direitos existentes nessa estrutura. Outras abusaram das estruturas alternativas de trabalho, utilizando-as exclusivamente para impor um rótulo falso à relação praticada que possui subordinação e assimetria e assim se evadir dos tributos devidos e da necessária observância dos direitos e restrições contidas no artigo 7º da Constituição, desequilibrando a relação.
No seu contato inicial com a questão, os órgãos julgadores não seguiram o complexo normativo. Para a maioria dos profissionais, veio a ser encampada a presunção absoluta de fraude das estruturas alternativas, fazendo com que as empresas que as adotassem e fossem questionadas vissem a relação requalificada, independentemente de a terem utilizado licitamente. A exceção foram os advogados, nas quais prevaleceu a linha reversa de presunção absoluta de validade das relações alternativas e inviabilidade de requalificação.
As consequências da linha reversa foram graves. Sendo a correção judicial inviável, os escritórios passaram a obrigar a integralidade dos advogados de seus quadros a ingressar no contrato social ou firmar “contratos de associação” para terem a aparência de “sócios” ou “associados”, embora materialmente empregados [1].
Sem as proteções associadas às relações subordinadas e assimétricas, essas relações se desenvolveram de maneira abusiva como já era esperado: jornadas hercúleas acima de 12 horas diárias, sem interrupção nos finais de semana ou direito a férias tornaram-se constantes assim como cobranças excessivas e humilhações. Tudo para maximizar as receitas geradas a partir do trabalho do advogado que eram apropriadas pelos reais sócios do escritório, enquanto o primeiro percebia remuneração similar à de qualquer outro empregado.
A partir de 2017, o racional de presunção absoluta de fraude foi superado pela Corte Suprema dado que além de não haver norma constitucional ou legal impondo exclusividade da natureza empregatícia para relações de trabalho, as relações alternativas previstas legalmente não precarizam a situação dos trabalhadores.
Paralelamente, houve uma mudança na posição majoritária da Justiça do Trabalho no início da década passada, que se permitiu olhar para as relações de trabalho entre advogados e avaliar sua higidez frente o complexo normativo. Ao fazê-lo, se deparou com fraudes caricatas, sem intenção de observar a estrutura alternativa ou conceder direitos de sócios/associados, gerando, como determina a lei, desconstituições de avenças, requalificação de relações e entrega ao advogado dos direitos próprios da real relação praticada.
A posição revisada da Justiça do Trabalho com aplicação do complexo normativo foi submetida em 2018 ao crivo do STF no Tema nº 1.005 da Repercussão Geral (Recurso Extraordinário nº 1.123.068), sendo reconhecida a “possibilidade de reconhecimento de relação empregatícia a advogado com vínculo societário em escritório de advocacia“; e a infraconstitucionalidade da controvérsia relativa à identificação dos vícios que justificam a anulação da avença. Similar validação do uso do complexo normativo para anulação de avenças e requalificações também ocorreu para as autoridades fiscais no âmbito da ADPF nº 647.
A leitura combinada dos precedentes vinculantes existentes permite inferir que o posicionamento da Corte Suprema convergiu no sentido de que são válidas e passíveis de uso as estruturas alternativas de trabalho, sendo tal direito limitado apenas pela necessidade de se observar os requisitos de validade da legislação brasileira para o tipo de avença escolhido. Caso esses requisitos fossem descumpridos e fosse provado que a relação praticada no cotidiano era subordinada/assimétrica, seria obrigatória a anulação da avença documentada e a adequação à legislação brasileira do tratamento jurídico da relação e seus atos.
Temendo, após ter visto o que os escritórios fizeram com os advogados, que a permissão ao uso das estruturas alternativas de trabalho culminaria na proliferação de fraudes, a Justiça do Trabalho teve uma equivocada (mas empática) resistência à posição do STF e a aplicar o complexo normativo aos demais trabalhadores, sendo proferidas algumas decisões destoantes que mereciam a cassação via reclamação constitucional.
Só que algumas empresas viram nesse processo de adequação uma chance para chancelar a ilegal prática de “contratar como PJ/sócio/associado para trabalhar como CLT sem direitos”. Para alcançar esse ilícito objetivo, elas passaram a questionar através de reclamações constitucionais todas as decisões administrativas e judiciais que anulavam avenças de trabalho escritas e reconheciam a natureza empregatícia da relação pela aplicação do complexo normativo diante da comprovação dos vícios na avença e da presença de subordinação/alteridade na relação praticada, de maneira a sobrecarregar a Corte Suprema e alimentar uma constante percepção falsa de que seu entendimento jamais seria seguido pela Justiça do Trabalho.
Sob pressão extrema, o STF passou a majoritariamente cassar as decisões reclamadas, já que o próprio volume de reclamações tornava verossímil a ilusória alegação de que o vínculo havia sido reconhecido por “presunção de fraude“. A cassação massiva sem aprofundamento nas razões corroeu a compreensão sobre a fundamentação adotada nos precedentes vinculantes do tema, sendo propagandeado que a avença de estrutura alternativa com assinatura do trabalhador não poderia ser fiscalizada ou anulada em cenário algum, mesmo que presentes vícios e defeitos, algo que jamais foi decidido nos precedentes vinculantes e que era refutado quando havia alguma margem para analisar a reclamação constitucional com maior profundidade.
Deve ser mantida a vigência e eficácia do complexo normativo, considerando que ele representa a legítima opção legislativa feita pelos representantes do povo que, se de um lado quiseram que as empresas pudessem escolher dentre várias estruturas para uma relação de trabalho, de outro também desejaram que a relação fosse digna e justa em qualquer uma que fosse escolhida; e é integralmente necessário para garantir direitos constitucionais irrenunciáveis (direitos dos trabalhadores a condições laborais dignas), adotando um padrão técnico/racional adequado, eficiente e razoável para alcançar esse legítimo objetivo.
A posição de que basta um documento escrito para tornar a relação imune do controle judicial, ainda que nada dali se materialize, que as trocas equivalentes não sejam respeitadas ou que a empresa imponha sua vontade sobre o trabalhador, é temerária por tornar o respeito às normas brasileiras uma faculdade e coloca em risco o sistema de proteção laboral, a arrecadação previdenciária e a própria livre iniciativa e concorrência, já que empresas fraudulentas terão vantagens sobre outras que seguem as leis e respeitam os trabalhadores. Estabelecer que o pacto firmado seja preservado para todos os fins legais até que haja a confirmação de sua incompatibilidade com o ordenamento, outorga segurança jurídica nas avenças de trabalho na dose certa.
O complexo normativo não produz violação ao princípio de proteção à livre iniciativa, que não garante uma anárquica liberdade absoluta e permite que havendo necessidade (como há), o Estado intervenha na ordem econômica; à intangibilidade do ato jurídico perfeito, já que tal característica é atingida apenas pelo ato que observe a “lei vigente ao tempo em que se efetuou” (artigo 6º, §1º da LINDB); e à obrigatoriedade do cumprimento de compromissos contratuais assumidos, já que a avença nula por descumprir os requisitos de validade da legislação brasileira não produz efeitos jurídicos, sendo certo que a anulação usualmente decorre da própria falta de cumprimento do compromisso por parte da empresa e há proibição legal explícita à parte violadora de uma avença impô-la à outra parte (artigo 476 do CC/02).
Quanto à recorrente invocação de “torpeza” do trabalhador que aceita a estrutura alternativa e depois a contesta cabe dizer que não é torpe quem aceita a solicitação da empresa para adoção de uma estrutura alternativa e depois tem sua confiança traída por ela ao não observar a estrutura que escolheu, não sendo razoável exigir que ele encerre a relação ficando sem fonte de sustento quando a violadora à lei foi a empresa; nada relacionado ao trabalhador seria capaz de convalidar a relação viciada por violação à lei e a vedação do CC/16 ao pleito de anulação do participe/cúmplice de ato fraudulento foi revogada no CC/02.
Em relação à suposta inaplicabilidade da sistemática para trabalhadores não-hipossuficientes, deve-se notar que a sistemática legal não contém qualquer ressalva à sua aplicação a depender do tipo de trabalhador; que a hiperssuficiência dos trabalhadores não obsta que eles sejam vítimas de atos maliciosos e lesões por terceiros e que tal circunstância impede apenas que aleguem “erro” ou “ignorância“ em suas manifestações de vontade, sendo plenamente possível a presença dos demais vícios de consentimento; e que a manifestação de vontade legítima é apenas um dos requisitos do negócio jurídico, mas não o único.
Por sinal, é falaciosa a alegação de que ao se anular a avença e requalificar a natureza da relação para empregatícia o trabalhador ficará com o “melhor dos dois mundos”, dado que eventuais direitos, vantagens ou enquadramentos fiscais da relação alternativa tornam-se indevidas com a requalificação, cenário em que o trabalhador deve recolher os tributos sobre os valores devidos e pagos como se os tivesse recebido como empregado; e deve compensar a empresa pelos direitos que ela porventura tenha concedido e que inexistiriam numa relação de natureza empregatícia (o que quase nunca ocorre nas relações anuladas). Na verdade, à míngua de anulação é a empresa que ficará com o “melhor dos dois mundos”, já que usufruiu de mão de obra subordinada e se apropriou das receitas geradas sem conceder os direitos do artigo 7º da Constituição.
A sociedade brasileira precisa urgentemente que o Supremo Tribunal Federal selecione um novo caso paradigma para julgar a matéria e avaliar se avenças particulares devem ser mantidas a qualquer custo, mesmo que estejam em flagrante violação às normas brasileiras aplicáveis ou prejudicando direitos alheios.
É bem claro que, fora do cenário caótico gerado pelo bombardeio das reclamações constitucionais, essa posição que destoa da sistemática legal em vigor não será chancelada, inclusive porque se de um lado as estruturas alternativas legítimas não precarizam os trabalhadores, certamente o fazem as estruturas híbridas e iníquas originadas do uso de um rótulo falso de estrutura alternativa sobre uma relação assimétrica.
[1] Por não participar verdadeiramente da distribuição dos lucros da atividade; não ter poder diretivo, não votando e muitas vezes sequer sendo ouvidos para decisões gerenciais; e não ter autonomia, mas efetiva subordinação, tendo que obedecer às ordens de profissionais “hierarquicamente superiores”.
é advogado. Bacharel em Direito pelaUFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Professor convidado em Direito Aduaneiro e Tributário no IBDT/SP, Apet/SP, FBT/SP e PUC/PE. Diretor de Contencioso Aduaneiro do Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro (IPDA).
CONJUR
https://www.conjur.com.br/2025-fev-27/relacoes-alternativas-de-trabalho-so-o-papel-nao-basta/