A fumaça branca de maio anunciou Leão  14 — um pontífice que, já no nome, homenageia Leão 13 e a Rerum Novarum. O gesto lembra que, sob maneiras distintas de explorar o trabalho humano — fábricas do século  19 ou plataformas digitais do século  21 — subsiste a mesma urgência ética: garantir dignidade, salário justo e participação aos que vivem do próprio esforço. Este artigo dialoga com aquele documento de 1891, recuperando algumas de suas passagens mais eloquentes e mostrando como servem de bússola para problemas atuais, do vínculo de motoristas de aplicativo ao direito à desconexão.

 

Logo no início da encíclica, Leão 13 descreve a “sede de inovações” que agitava as sociedades industriais e criava um “temível conflito” entre classes sociais. Quase um século e meio depois, o novo papa relembra que o conflito permanece — agora alimentado por algoritmos, big data e inteligência artificial, capazes de desregular jornadas e diluir responsabilidades trabalhistas. As reflexões sobre a questão social alimentaram a formação do Direito do Trabalho brasileiro e inspiraram princípios como o da intervenção estatal em favor dos vulneráveis.

A Rerum  Novarum convoca o Estado a ser “providência dos trabalhadores”, pois estes “são menos aptos para defender‑se”. Sussekind (1996) observa que a partir daí o Estado passa a atuar como órgão de equilíbrio, colocando limites ao individualismo contratual. Hoje, tal missão protetiva exige presunção de vínculo quando houver subordinação tecnológica, transparência nos critérios algorítmicos de remuneração e novas formas de negociação coletiva digital.

Entre os “deveres principais do patrão”, Leão 13 destaca pagar “a cada um o salário que convém” — suficiente para sustentar trabalhador e família. No Brasil, tal ideal ecoa nos incisos VI e VII do artigo 7.º da Constituição, que consagram a irredutibilidade salarial. Delgado (2009) frisa o caráter alimentar do salário, núcleo de sua tutela jurídica. Diante das micropagamentos por tarefa e da economia de “corridas”, a noção de salário vital continua parâmetro para conceber pisos por hora logada e contribuições previdenciárias compulsórias.

Lógica de colaboração

Leão 13 denuncia a sobrecarga que “embrutece o espírito e enfraquece o corpo” e afirma não ser “equitativo exigir o mesmo esforço de uma mulher ou de uma criança”. Essas passagens inspiraram limites de jornada e proteções especiais inscritos na CLT, cujo artigo 483 a permite a rescisão quando o empregador exige serviços superiores às forças do empregado. No século 21, a fadiga é potencializada por métricas em tempo real e hiperconexão: torna‑se imperioso legislar sobre direito à desconexão, intervalos térmicos em crises climáticas e prevenção de sobrecarga cognitiva.

A encíclica rejeita a tese de um antagonismo inevitável entre capital e trabalho, sublinhando que “não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital”. O próprio texto pontifício, portanto, já propõe uma lógica de colaboração recíproca. Cardoso (2019) lembra que a carta foi publicada no auge do capitalismo liberal, dos primeiros anos do movimento marxista e do início das reivindicações operárias, contexto em que se tornava urgente buscar fórmulas de convivência menos conflituosas entre patrões e empregados.

Embora reconheça a legitimidade das reivindicações operárias, Leão 13 também adverte contra projetos que visam à abolição da propriedade privada. Para ele, suprimir por força toda a propriedade privada infligiria uma injustiça aos proprietários, violaria direitos naturais e, em última análise, agravaria a condição dos proletários. O pontífice alerta que tais soluções extremas poderiam inviabilizar o próprio trabalho digno que se pretende promover — lição ainda válida para as reformas regulatórias que buscam equilibrar inovação e justiça social na economia contemporânea.

Até agora, os pronunciamentos de Leão 14 têm‑se concentrado em temas como migração, paz e defesa da dignidade humana, sem abordar diretamente as questões trabalhistas discutidas neste artigo. Assim, qualquer convergência entre o novo pontificado e as propostas de regulação da economia de plataformas permanece, por ora, no campo das projeções de analistas.

Ainda assim, sua eleição reforça o lembrete de que o trabalho humano — presencial ou remoto, braçal ou digital — não pode ser tratado como mera mercadoria. A  Rerum  Novarum segue como farol para legisladores, magistrados e operadores do Direito em geral: se o século 19 precisou de leis para conter a engrenagem da fábrica, o século 21 exige limites à engrenagem dos algoritmos. Sob o nome de Leão, o Direito do Trabalho é chamado a atualizar essa mensagem perene: não há progresso legítimo sem dignidade para quem trabalha.


Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível aqui.

BRASIL. Decreto‑Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 9 ago. 1943. Disponível aqui.

CARDOSO, Jair Aparecido. Rerum novarum: a influência da cultura social cristã no direito do trabalho. Direito internacional do trabalho: estudos em homenagem ao centenário da OIT, 2019.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho – 8. Ed. – São Paulo: LTr. 2009.

LEÃO XIII, Papa. Rerum novarum: carta encíclica sobre a condição dos operários, 15 maio 1891. Disponível aqui.

SUSSEKIND, Arnaldo. Instituições de Direito do Trabalho – 16. Ed. – São Paulo:LTr, 1996.