Isabel Cristina de Medeiros Tormes
Caso inédito revela o uso de boneca reborn como "filha" em ação trabalhista, expondo dilemas jurídicos e sociais sobre afeto, solidão e vínculos humanos.
Uma boneca reborn. Feita de vinil, com veias pintadas à mão, cabelo implantado fio a fio e o peso milimetricamente calculado de um bebê de verdade. Registrada, ao menos afetivamente, por sua mãe, que por ela nutre vínculo emocional profundo, a ponto de pleitear na Justiça do Trabalho reconhecimento da rescisão indireta por conta da negação de sua "maternidade afetiva" e dano moral.
Sem dúvida, um caso inédito e perturbador que reacende um debate delicado: até que ponto o Direito pode e deve acolher manifestações emocionais dissociadas da realidade objetiva. Quando o desejo afetivo se transforma em reivindicação jurídica, há algo a ser protegido, ou algo a ser tratado. A judicialização da dor afetiva não sinaliza apenas um pedido de direito. Sinaliza uma crise coletiva de vínculos, em que o simbólico substitui o concreto, e o afeto, privado de mediações reais, grita no vazio.
A emergência dos bebês reborn, como mostrou reportagem da BBC Brasil no presente mês de maio, revela um fenômeno crescente, sobretudo entre mulheres. Trata-se, em muitos casos, de respostas subjetivas a traumas de perda gestacional, infertilidade, isolamento afetivo, abandono ou solidão. As bonecas funcionam como simulacros de cuidado: podem ser alimentadas, vestidas, embaladas. Mas não devolvem o olhar, não choram, não crescem, não morrem. Um experimento emocional controlado, estético, profundamente silencioso.
Por trás do gesto de amor, esconde-se uma dor sem nome. E é esse o ponto: o reborn não é um bebê. É um sintoma. Um reflexo de um mundo onde os laços afetivos estão rarefeitos, e onde o trabalho não oferece sentido, nem pertencimento. Quando uma mulher precisa converter uma boneca em filha para sentir-se viva, há algo errado com a sociedade. E é sobre isso que o Direito precisa refletir.
Uma ação trabalhista, veiculada midiaticamente como furacão desde a data de ontem, tida como bizarra, expõe uma perigosa transposição entre o íntimo e o jurídico. O Direito do Trabalho, voltado à proteção de vínculos reais de emprego e à dignidade humana das trabalhadoras e trabalhadores, obviamente, não pode ser capturado por narrativas subjetivas sem base empírica concreta. É inadmissível distorcer o sentido da maternidade no mundo jurídico. O que revela esse episódio inusitado, entretanto, é um vazio que nem a CLT nem o afeto simbólico conseguem preencher. O caso denuncia a fragilidade das redes de apoio, o abandono psíquico e o colapso das referências sociais sobre o que é cuidar, o que é ser mãe, o que é trabalhar, o que é amar. Quando o vínculo mais elementar da humanidade, o materno, precisa ser projetado sobre um objeto inanimado, isso fala menos sobre maternidade e mais sobre solidão.
Se a sociedade chegou ao ponto de falar em licença-maternidade para cuidar de uma boneca, é o laço social que precisa ser restaurado. E talvez a resposta esteja menos no processo, e mais no cuidado, o verdadeiro, o que envolve gente viva, escuta mútua, política pública, afeto real. O que não pode ser substituído por um ventre de silicone.
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1 GRANCHI, Giulia. Bebês reborn: "Apego por boneca pode vir da vontade de controle absoluto das relações". BBC News Brasil, 24 maio 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c14kkxxe4p0o. Acesso em 28 maio 2025.
Isabel Cristina de Medeiros Tormes
Formada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Isabel Cristina de Medeiros Tormes é advogada com atuação exclusiva na área trabalhista há quase três décadas. Especialista em Direito da Moda (Fashion-Law), é presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo (AATSP) e sócia do Rodrigues Jr. Advogados.