Veluma Ribeiro
Cresce a demanda por limites à hiperconectividade no home office, enquanto normas como a NR-1 impõem deveres ao empregador e expõem lacunas na proteção da saúde mental e no controle da jornada.
No período pós pandêmico o teletrabalho consolidou-se como uma realidade duradoura nas relações de emprego no Brasil, alterando de forma profunda a dinâmica entre empresas e trabalhadores, tornando-se um benefício. A adoção massiva desse modelo evidenciou novas formas de organização laboral, mas também revelou fragilidades normativas, especialmente no que diz respeito à saúde mental dos empregados e ao direito à desconexão. A legislação trabalhista, embora tenha avançado em pontos pontuais com a Reforma Trabalhista (lei 13.467/17) e posteriormente com a lei 14.442/22 (Art. 75-B ao 75-E da CLT), ainda carece de regulamentações mais detalhadas que respondam adequadamente às demandas oriundas do trabalho remoto.
Nesse cenário, destaca-se a importância da NR-1 do Ministério do Trabalho e Emprego, que dispõe sobre disposições gerais e o gerenciamento de riscos ocupacionais. A NR-1 representou um avanço ao incluir os riscos psicossociais como elementos a serem observados no PGR - Programa de Gerenciamento de Riscos pelas empresas.
Com sua aplicação restrita ao caráter educativo a partir de 2025, sem previsão de multas, a NR-1 corre o risco de servir mais como ferramenta de imagem corporativa do que como instrumento eficaz de reestruturação das práticas laborais.
A implementação obrigatória das medidas específicas relacionadas à saúde mental foi adiada para 26 de maio 2026, o que gerou preocupações quanto à eficácia da proteção à saúde do trabalhador, sobretudo em contextos onde a desconexão entre vida pessoal e vida profissional tem sido gradualmente apagada.
O adiamento, embora possa ser justificado por razões técnicas ou operacionais, possibilita que as empresas se adaptem às novas exigências, mas não exime o empregador da responsabilidade constitucional de proteger a saúde e integridade dos seus empregados, inclusive nos aspectos psíquicos. Os arts. 6º e 7º, inciso XXII, da Constituição Federal garantem o direito à saúde, ao lazer e à limitação da jornada de trabalho. Não há legislação infraconstitucional expressa quanto ao direito à desconexão, todavia este é consequência direta dos princípios da dignidade da pessoa humana e da valorização social do trabalho, devendo ser respeitado mesmo na ausência de previsão legal específica.
O direito à desconexão já é regulamentado em diversos países. A França foi pioneira (2017), obrigando empresas a negociar limites de contato fora do expediente. Itália e Espanha também legislaram sobre o tema, associando-o à proteção da saúde e dos direitos digitais. Portugal, em 2021, proibiu expressamente o contato de empregadores fora do horário de trabalho, prevendo sanções. Esses exemplos demonstram a viabilidade de regulamentações semelhantes no Brasil, por meio de lei, convenções coletivas ou políticas internas.
No regime de teletrabalho, a dificuldade de delimitar o tempo de trabalho e de repouso potencializa riscos relacionados ao esgotamento mental, distúrbios do sono, ansiedade e síndrome de burnout. O distanciamento físico, somado à constante conectividade, favorece um cenário de controle informal, porém contínuo, no qual o trabalhador se vê compelido a estar sempre disponível, violando direitos fundamentais ao descanso e ao convívio familiar. Ainda que a CLT estabeleça que, no teletrabalho, o controle de jornada pode não ser exigido, a jurisprudência tem reconhecido exceções, principalmente quando há meios tecnológicos de monitoramento indireto da produtividade ou exigência de entrega constante.
Nesse contexto, o direito à desconexão emerge como uma ferramenta indispensável de preservação da saúde mental. Embora ainda pendente de regulamentação legislativa, o Judiciário tem suprido essa lacuna ao reconhecer o dano moral em casos de sobrecarga digital ou exigência de disponibilidade constante fora do expediente, mesmo quando o vínculo ocorre à distância.
A postergação das obrigações previstas na NR-1 até 2026 não impede que empresas mais responsáveis e atentas aos seus deveres legais e sociais adotem medidas preventivas desde já. A antecipação ao cumprimento de boas práticas relacionadas à gestão dos riscos psicossociais pode, inclusive, reduzir a judicialização de conflitos e aumentar a produtividade de forma sustentável. Mesmo sem obrigatoriedade, a inclusão de políticas de saúde mental no PGR, a capacitação de lideranças sobre assédio e sobrecarga digital, a definição clara de horários de atendimento e a promoção de canais de escuta ativa podem contribuir significativamente para um ambiente laboral mais saudável e equilibrado.
A documentação adequada das práticas empresariais, a formalização de acordos coletivos e a previsão contratual de regras claras sobre tempo de conexão, pausas e descanso são elementos fundamentais para garantir segurança jurídica e evitar a responsabilização futura. É necessário delimitar com precisão os limites da jornada digital e os direitos do trabalhador à desconexão e ao silêncio eletrônico.
Conclui-se que, mesmo diante do adiamento da aplicação plena da NR-1 quanto à saúde mental, a efetiva proteção do trabalhador em regime remoto exige atuação ativa por parte das empresas. O direito à desconexão não pode ser ignorado, sob pena de tornar o teletrabalho um instrumento de violação de direitos e agravamento da saúde mental. Em um cenário no qual o ambiente de trabalho ultrapassa as fronteiras físicas da empresa, o cuidado com os aspectos emocionais e psicológicos da relação de emprego torna-se não apenas um dever jurídico, mas também um imperativo ético e estratégico. A preparação para as exigências de 2026 deve começar agora, através da compliance trabalhista digital, sob risco de que o avanço tecnológico se transforme, mais uma vez, em fator de precarização das relações laborais.
Veluma Ribeiro
Advogada especialista em Direito Civil e Processo Civil no escritório Gameiro Advogados.