Defensores incondicionais da IA, incansáveis em anunciar que o mundo dos algoritmos libertaria a humanidade do trabalho cansativo, extenuante; e que todos teriam mais tempo livre para se dedicar aos seus desejos, paixões e sonhos pessoais, agora estimula uma jornada de 72 horas, mais conhecida pela sigla 996, equivalente a uma jornada de trabalho das 9h às 9h da noite, seis dias por semana. A ideia nasceu em meados da década de 2010, durante o boom tecnológico da China, quando as empresas procuravam avançar no domínio das tecnologias digitais. Hoje, banido legalmente na China, o modelo tornou-se produto de exportação e agora é defendido no coração do Vale do Silício, na Califórnia, por startups e grandes empresários. Pretende ser uma receita para o sucesso no mundo da IA. Mas, por suas implicações para a saúde e suas dificuldades para estimular a produtividade, é foco de controvérsia. E das grandes.
Ainda que uma jornada com essa intensidade não fosse oficialmente reconhecida, por conta do limite legal de 44 horas semanais, penetrou fundo entre empreendedores chineses, ao ponto de dar forma a uma cultura que marcou milhares de empresas de tecnologia.
Gigantes como Alibaba e Huawei defenderam jornadas extremas de trabalho e associaram a marca 996 com noções de “comprometimento” e “dedicação”. Um dos empresários chineses mais conhecidos e fundador da Alibaba, Jack Ma, declarou publicamente que essa jornada extenuante seria uma “grande bênção”.
Não foi apresentada apenas como mais uma ambição corporativa. Os defensores da cultura 996 procuravam unir a competitividade capitalista a preceitos confucionistas de hierarquia, trabalho árduo e lealdade à família. Na prática, esse coquetel feito de fatores econômicos e ideologia cultural redefiniu o que seria trabalho duro no cenário tecnológico da China, uma espécie de arma secreta para alcançar o predomínio tecnológico via crescimento econômico rápido e, assim, superar seus maiores adversários, a começar pelos Estados Unidos.
Apesar de severas críticas pela sua marca de superexploração mal disfarçada, a jornada 996 atraiu uma legião de empreendedores por se apresentar como o motor da inovação e o único caminho para o êxito nos negócios e o avanço da competitividade nacional.
Não foram poucos os dirigentes e empresários que vincularam o modelo 996 ao crescimento expressivo de seus negócios. Empreendedores como Jack Ma, fundador da gigante do varejo online Alibaba, e Richard Liu, da plataforma de comércio eletrônico JD.com, elogiaram repetidamente o 996. Em 2019, Jack Ma chegou a afirmar na plataforma de mídia social Weibo que seria “uma bênção poder fazer 996”; com estratégia semelhante, a Huawei sugeriu que a liderança nas tecnologias de 5G e sua expansão pelo globo, inclusive no Brasil, estavam ligadas ao trabalho intensivo.
Para muitos trabalhadores chineses a jornada 996, apesar de extenuante, aparecia como uma estratégia de ascensão que prometia riqueza em troca de enormes sacrifícios. Empregadores grandes e pequenos driblavam a legislação pouco rigorosa – e insuficientemente fiscalizada – e envolviam seus funcionários em um sistema que gerava grandes benefícios para suas próprias empresas. Enormes conglomerados, motivados a maximizar seus lucros e ganhar espaço no mercado global, adotaram – ainda que informalmente – o 996, ajudando a espalhar o modelo pelos quatro cantos da China.
Não foram poucos os analistas, inclusive no mundo ocidental, que creditaram ao pesado ambiente de trabalho os rápidos e surpreendentes avanços da economia chinesa. As métricas dessa progressão, no entanto, quase sempre secundarizavam os indicadores de saúde dos trabalhadores e exacerbavam o peso da 996 para a elevação da produtividade.
Em 2019, uma onda de protestos ganhou corpo e sacudiu a comunidade tecnológica. Um registro na plataforma GitHub sugeriu que o modelo, antes de tudo, empurrava os trabalhadores para o pronto socorro. Um grito de guerra no formato 996-UTI se esparramou por fábricas e escritórios e chamou a atenção da imprensa, da sociedade e das autoridades [1]. A polêmica ganhou maior musculatura após a morte de dois tecnólogos no início de 2021 e gerou protestos públicos que levaram o Ministério de Recursos Humanos e a Supremo Tribunal Popular a declarar a ilegalidade da jornada 996 [2].
Estudos e reportagens expuseram a explosão de problemas de saúde, como estresse, esgotamento, fadiga, dores musculares, distúrbios do sono, tentativas de suicídio e mortes, que geraram grande repercussão e abriram um amplo debate sobre o custo social derivado de um ritmo de trabalho tão rigoroso [3]. Com a ilegalidade da 996 oficialmente reconhecida, as pressões das empresas sobre seus funcionários foram contidas, ainda que não tenham sido extintas. Enormes conglomerados de tecnologia que ganharam o status de players globais tiveram suas imagens manchadas pelos altos custos humanos que provocaram [4].
Sabe-se que os ganhos de produtividade frutos de jornadas extremas, quando ocorrem, têm fôlego curto e não são sustentáveis. Foi assim nos surtos industriais e no início da digitalização das economias.
A realidade do trabalho intensivo com estilo semelhante ao 996 traz números sombrios, que são mais acentuados em culturas com forte presença tecnológica. Estudos no Reino Unido mostraram que períodos maiores do que 11 horas de trabalho por dia aumentam o risco de ataque cardíaco em quase 70%. Pesquisas do Centro de Controle de Doenças dos EUA (CDC, 2021) concluíram que as semanas com mais de 55 horas de trabalho aumentavam as taxas de AVC e de ocorrências de doenças cardíacas. Jornadas extensas com ritmo frenético, sem pausa para refeições, reflexão e sono reparador provocam declínio cognitivo e tendem a diminuir a criatividade e autoestima.
Mesmo assim, as tentativas de reprodução do modelo chinês crescem continuamente.
Levantamentos realizados no Vale do Silício mostram que o modelo 996 está sendo adotado em startups de tecnologia e por empresas de IA. E nem sempre discretamente.
Muitos propagam que a IA é apenas imaterial, dada sua linguagem macia, cujos dados estão nas nuvens, que se baseia em realidades virtuais e que circula informação on-line. Nada mais enganoso. Por trás do digital, a realidade mostra um enorme consumo de energia, de água, de semicondutores dependentes de minerais críticos que alimentam computadores e gigantescos centros de armazenamento. Mais importante ainda, o universo virtual é movido a trabalho humano, que vai muito além dos programadores, engenheiros, estatísticos e cientistas de computação de dados. O glamour em que vive a elite do Silicon Valley nada tem a ver com os chamados ghost workers, trabalhadores mal-remunerados que imigraram para os EUA, que vivem em países africanos, se espalharam pela América Latina, que trabalham no Brasil, na Índia, no Quênia, na África do Sul e que respondem pela gerência invisível da informação, pela rotulação, classificação, mineração e preparação dos bancos de dados. A esse enorme corpo de trabalhadores nem sempre bem qualificados, certamente vai se somar a legião de adeptos do 996, em sua versão californiana ou de outros centros, que se dispõe a enfrentar os riscos e a incerteza de uma jornada extrema em troca de promessas de um bem-estar dourado e de contribuições ao sucesso de seus países na competição geopolítica movida pela IA. A ética desgovernada do sobretrabalho unifica jovens do Oriente e Ocidente que buscam no silício um sentido para seus negócios e suas vidas.
Difícil. Mas vai exaurir muita gente. A competição desenfreada pelo predomínio da IA empurra empresas em todo o mundo a flertar com jornadas de trabalho extensas, como solução para avançar em sua competitividade. É crescente o número de empresas e empreendedores que não escondem seu fascínio pelo Vale do Silício, mas que, ao mesmo tempo, enxergam no sistema 996 com sotaque chinês um contraponto ao espírito sonolento do Ocidente, de quem costuma trabalhar cinco dias por semana das 9h às 17h.
Não se referem somente à intensidade e ao ritmo. Mas tentam desconstruir o arraigado equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Nas bigtechs é praticamente normal que funcionários de alto nível entrem em maratonas de trabalho, principalmente em áreas em que a velocidade é moeda de troca. O debate, porém, procura estender as pressões por jornadas mais extensas para a grande maioria dos trabalhadores, como se as oportunidades fossem as mesmas para todos.
A cultura do always on, disseminada nos grandes conglomerados, visa mais do que a um aumento de produtividade. É portadora de uma mensagem poderosa e silenciosa para todos os funcionários: se quiserem prosperar na era da IA, não economizem no sacrifício. Ou seja, a IA precede jantares em família, pausas para acalmar corações e mentes, intervalos para o cafezinho, férias prolongadas, licenças de todo tipo [5].
Na história, essa mecânica não é nova. Elon Musk, dono da Tesla e da SpaceX, foi um dos primeiros a impulsionar demandas por trabalho extremo no setor de tecnologia. Chegou a defender abertamente jornadas de 100 horas semanais para suas equipes mais próximas. Incentivou estagiários e profissionais iniciantes a “trabalharem como loucos” para acompanhar o ritmo da IA, como se o trabalho dobrado resultasse em progresso duas vezes maior [6].
Mindset semelhante alimenta atualmente uma nova geração de startups e corporações de tecnologia, que tenta trocar o equilíbrio de vida ou a diversão por um esforço intenso para aproveitar as oportunidades oferecidas pela IA. É o que tem levado empresas diversas a dispensar funcionários não dispostos a respeitar uma cultura de desempenho extremo, que pode chegar a jornadas de 72 e até de 80 horas por semana [7].
Além da tradição e cultura distintas da chinesa, empresas norte-americanas e europeias enfrentam uma adversária distinta, mais jovial e poderosa: a Geração Z, composta pelos nativos digitais. Jovens nascidos entre meados dos anos 1990 e início dos anos 2000 vão dominar o mercado de trabalho até 2030. Visões simplificadoras tentam apresentar essa geração como adepta do empreendedorismo baseado no trabalho sem descanso. Mas as pesquisas revelam perfil mais complexo. Essa camada de jovens, apesar de preferir trabalho mais flexível, sem amarras da formalidade, resiste a aceitar o comprometimento com a intensidade semelhante às propostas pelos sistemas 996 [8]. Nos EUA, a Geração Z é autodidata, individualista e gosta de hiperconexão com as plataformas; mas, ao mesmo tempo, preza sua independência e valoriza a qualidade de vida e o bem-estar [9]. São jovens que querem empreender, mas não aceitam facilmente a linguagem do trabalho extenuante. É o que tem levado empresas como a TikTok e a Tencent a reduzir a carga de trabalho de seus funcionários para reter parcela de sua audiência preferencial [10].
Isso significa que, além das barreiras formadas por hábitos e cultura [11], o modelo 996 se depara com a realidade do mercado de trabalho, que, em geral, não registra movimentos massivos e generalizados de ascensão rápida. Mais ainda quando se sabe que nos segmentos e empresas voltadas para a inovação, o trabalho excessivo tende a constranger a criatividade e a entorpecer a atividade cognitiva. Fortes evidências empíricas mostram retornos decrescentes (e até negativos) em períodos de atividade com mais de 50-55 horas por semana, além do erro e do retrabalho que aumentam no sentido inverso ao aumento da jornada.
Nos países em desenvolvimento, que não estão ainda preparados para os embates tecnológicos propiciados pela IA, o debate público ainda é tímido. Ao mesmo tempo, por conta do menor desempenho de suas economias, o modelo europeu de 35 horas por semana tem poucas chances de vingar. Isso significa que há portas abertas para propostas que intensificam o trabalho, ainda que o caminho esteja repleto de barreiras.
Primeiro, porque o sistema regulatório e a legislação de muitas economias emergentes, inclusive o Brasil, estabelecem limites para a jornada de trabalho e preveem o pagamento de horas extras, o que tornaria o modelo 996 economicamente inviável para muitas empresas.
Segundo, porque não há muito espaço para a fetichização do excesso de trabalho como mecanismo de ascensão rápida, já que a mobilidade social nos países em desenvolvimento é mais lenta, difícil e, na maior parte das vezes, não está atrelada à duração da jornada de trabalho.
Terceiro, porque histórias contadas ao estilo Elon Musk ou Jack Ma nem sempre batem com a realidade, já que mesmo o trabalho mais intenso não chega a eliminar as pausas e descansos.
E quarto, porque, para além das corporações de tecnologia, há empresas altamente inovadoras – como a Spotify, SAP, Bosch, a ASML, L’Oreal, GSK, NovoNordisk – que não subiram de patamar por meio do trabalho extenuante, mas por conta da criação de culturas inovadoras e sustentáveis forjadas ao longo de anos.
Na China, o modelo 996 penetrou na economia e deu fôlego extra às empresas de tecnologia até ser barrado legalmente pelo governo. Na Europa o embate é forte, por conta da legislação, das pressões pela diminuição da jornada de trabalho para gerar mais empregos e pela preocupação com a qualidade de vida. Nos países emergentes, a experiência ressalta que o enriquecimento rápido é para poucos e, na maior parte das vezes, está ligado a oportunidades diferentes do trabalho. Nos EUA, o slogan “move fast and break things”, cantado em verso e prosa por Mark Zuckerberg (Meta), pode até sensibilizar uma parte da comunidade de IA e ganhar oxigênio com as decisões de Donald Trump, mas vai ter de mostrar que os generosos resultados prometidos pelo modelo 996 não ficarão concentrados em poucos bolsos ou na tesouraria das grandes empresas.
[1] Wang; Zheng; Hu; Zheng (2014). Stress, burnout, and job satisfaction: Case of police force in China. Public Pers Manag 43(3):325-339. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0091026014535179.
[2] Na decisão da ilegalidade da jornada 996, a Suprema Corte afirmou: “Legalmente, os trabalhadores têm direito à remuneração correspondente e ao período de descanso ou de férias. Obedecer ao regime nacional de jornada de trabalho é obrigação dos empregadores. Horas extras podem facilmente levar a conflitos trabalhistas, impactar a relação trabalhador-empregador e a estabilidade social”.
[3] Ver: https://www.clausiuspress.com/conferences/AETP/ALSS%202021/Y0716.pdf; https://www.bbc.com/news/world-asia-china-58381538; https://www.voanews.com/a/east-asiapacific_ voa-news-china_chinas-high-court-warns-employers-996-scheduleillegal/ 6219221.html.
[4] A decisão marcou época como um dos poucos movimentos sociais que foram defendidos pelo governo chinês. Cf. Chan; Qiu (2003). Media liberalization under marketized authoritarianism in China. In Price; Beata (eds.), Media reform: Democratizing the media, democratizing the state. Routledge.
[5] Ver: https://www.success.com/996-work-culture-us-startups.
[6] Ver: https://www.youtube.com/watch?v=GtaxU6DZvLs.
[7] Inc.com. This AI startup just told its staff to leave with a check if they can’t take the heat. August 2025. Disponível em: https://www.inc.com/kit-eaton/this-ai-startup-just-told-its-staff-to-leave-with-a-check-if-they-cant-take-the-heat/91224532; The Economic Times. U.S. base Indian founder calls 80-hour workweek a ‘baseline’, says without 14+ hours a day, you won’t make it. Disponível em: https://economictimes.indiatimes.com/magazines/panache/us-based-indian-founder-calls-80-hour-workweek-a-baseline-says-without-14-hours-a-day-you-wont-make-it/articleshow/123059533.cms?from=mdr; https://in.mashable.com/culture/87879/lt-chairman-wants-his-employees-to-work-on-sundaystoo-how-long-can-you-stare-at-your-wife.
[8] Gabrielova; Buchko (2021). Here comes Generation Z: Millennials as managers. Business Horizons 64b(4): 489-499. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.bushor.2021.02.013.
[9] Pew Research Center. Defining generations: where millennials end and Generation Z begins. Disponível em: https://www.pewresearch.org/short-reads/2019/01/17/where-millennials-end-and-generation-z-begins.
[10] Chen; Masukujjaman; Al Mamun et al. Modeling the significance of work culture on burnout, satisfaction, and psychological distress among the Gen-Z workforce in an emerging country. Humanities and Social Sciences Communnications. 10, 828 (2023). Disponível em: https://doi.org/10.1057/s41599-023-02371-w.
[11] O desafio é grande. Basta lembrar que vários países europeus institucionalizaram a semana de trabalho de 35 horas, com ênfase na qualidade de vida, em direitos trabalhistas e no bem-estar mental.
Glauco Arbix é professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
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