Um argumento malicioso tem circulado para tentar legitimar a PEC da Blindagem: os congressistas estariam apenas a “restaurar” o texto original da Constituição, e por isso não seria inconstitucional ressuscitar a exigência de licença prévia, aprovada por voto secreto da maioria absoluta de deputados ou senadores, para que parlamentares sejam presos ou processados criminalmente.
De fato, essas condições constavam originalmente do artigo 53, §1º e §3º, mas foram abolidas pela Emenda Constitucional 35, de 2001. É, contudo, uma falácia dizer que, se os requisitos para a processabilidade parlamentar foram suprimidos por emenda constitucional, podem voltar da mesma maneira, a qualquer momento, segundo a vontade do Congresso Nacional.
A Constituição é um documento dinâmico, fruto de uma sociedade mutável, cujos valores, ideais, tecnologias e juízos evoluem no compasso dos avanços sociais, de sorte que um dispositivo, mesmo tendo sido constitucional um dia, pode tornar-se inconstitucional ainda que não haja alterações em sua redação. É o que a literatura jurídica chama de “mutação constitucional” ou Verfassungswandlung.
Isso ocorre porque a sociedade e os seus valores transformam-se e a interpretação dos dispositivos constitucionais precisa acompanhar essa mudança, para que a constituição continue a ser um documento legítimo e respeitado.
Se aquelas regras pareciam compatíveis com o sistema constitucional recém saído da ditadura, hoje, elas se revelam inconciliáveis com os princípios e valores jurídicos correntes, mesmo não tendo havido mudança formal em sua expressão linguística. As alterações tão-somente semânticas são resultado da dicotomia existente entre o texto (o material a ser interpretado) e a norma (o produto da interpretação). Dicotomia semelhante é vista entre a partitura e a música, o que faz com que a mesma orquestra, tocando a mesma sinfonia, tenha performances tão distintas caso regida por Toscanini ou Furtwängler.
As ampliações dos conceitos de “união estável” (para incluir uniões homoafetivas) e “casa como asilo inviolável” (para incluir o local de trabalho) são exemplos de mutações constitucionais reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal.
O Brasil mudou muito desde 2001 e não foi apenas quanto a cheques, orelhões e locadoras de vídeo. No panorama político-jurídico, por exemplo, um fato merece destaque: a condenação do País pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil, em 2021.
Foi justamente a negativa de autorização da Assembleia Legislativa da Paraíba para que se processasse um deputado estadual acusado de homicídio, o que garantiu a impunidade do parlamentar e, por consequência, a condenação do Brasil a garantias de não repetição e indenização por dano material e moral.
A defesa do País na instância internacional ainda alegou que a recusa da licença resultou de uma prerrogativa constitucional do deputado à época do crime. No entanto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou que o uso dessa imunidade representou um atraso discriminatório na investigação, além de violações ao direito de acesso à Justiça dos pais da vítima, bem como da obrigação de investigar o crime com a devida diligência e dentro de um prazo razoável.
No direito constitucional e no direito internacional, vale o princípio da “proibição do retrocesso”, um freio para impedir que conquistas civilizatórias já incorporadas ao ordenamento jurídico sejam desfeitas. O Estado não pode reduzir, suprimir ou esvaziar o nível de proteção já alcançado para os direitos humanos, já que a Constituição e os tratados internacionais de direitos humanos impõem a progressividade, isto é, uma vez implementado certo patamar de proteção, o legislador não pode retroceder, sob pena de inconstitucionalidade e inconvencionalidade.
No alpinismo, o cliquet é a catraca de travamento que permite o movimento apenas ascendente do montanhista, impedindo sua queda. O “efeito cliquet” constitui a metáfora que de que se valem os juristas para traduzir o princípio da proibição do retrocesso. Cada avanço em direção a um patamar mais elevado de proteção aos direitos humanos é um “clic” da engrenagem jurídica que obsta o retorno a estágios de menor carga protetiva.
Karl Loewenstein ensina que “cada Constituição é um organismo vivo, sempre em movimento, como a vida mesma (…). Uma Constituição não é jamais idêntica a si mesma, e está submetida ao panta rhei heraclitiano (…)”. O movimento a que se refere o professor alemão deve nortear-se na direção da justiça e da paz, a mesma paz de que fala Rui Barbosa ao Senado de ontem e de hoje: “Não há, como não pode existir, senão uma [paz], (…) a que assenta na lei, na punição dos crimes, na responsabilidade dos culpados, na guarda rigorosa das instituições livres.”
O grande jurista baiano ainda distingue essa mesma paz de uma outra, “a paz que humilha todos os homens honestos, a paz que nenhuma criatura humana pode tolerar sem abaixar a cabeça envergonhada”. Esperamos que o Senado saiba escolher o caminho daquela paz sustentável e proteja a nossa história constitucional da vergonha do retrocesso.
é árbitro da Corte de Arbitragem para a Arte (CAfA), árbitro do Centro de Mediação e Arbitragem da América Latina, pós-doutor em Direito Comparado pelo Instituto Universitário Europeu de Florença e professor de Direito Constitucional da Universidade Federal da Paraíba.
é doutora em Direito Internacional pela Universidade de Genebra e professora de Direito Internacional da Universidade Federal da Paraíba.
CONJUR
https://www.conjur.com.br/2025-set-24/a-pec-da-blindagem-e-o-efeito-cliquet/