Nas últimas décadas, um movimento de desregulação das relações de trabalho encorpou-se a ponto de alcançar a legislação trabalhista brasileira. Resultado de um processo de disputa hegemônica, as políticas governamentais de austeridade impactaram mundo afora na retirada ou redução de direitos sociais garantidos pelos ordenamentos jurídicos nacionais, assim como na mitigação dos direitos de trabalhadores e trabalhadoras. Afinal, predominou (e ainda parece predominar) a compreensão de que os direitos sociais e trabalhistas atravancam o desenvolvimento econômico.

A sanha reformadora, no entanto, não cessou com a entrada em vigor da Lei 13.467, de 2017, ocorrendo no ano seguinte o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da ADPF 324, que retirou os óbices legais e jurisprudenciais à intermediação de mão de obra com a terceirização.

Proteção social ao trabalhador

Atualmente, depara-se com outra matéria de repercussão importante cuja decisão a ser proferida pelo Supremo Tribunal Federal tem o poder de impactar de modo profundo e determinante no direito do trabalho brasileiro: a pejotização. Isso porque, caso predomine o entendimento de validade do contrato de PJ, independentemente de respaldo na realidade fática, pouca ou nenhuma eficácia terão as leis trabalhistas de proteção social ao trabalhador, já que inaplicáveis à relação jurídica diversa da empregatícia.

No Brasil, as leis de proteção social a quem vive da venda da sua força de trabalho praticamente se restringem ao contingente de trabalhadores abrigado no contrato de emprego. Desde sua criação, em 1943, a Consolidação das Leis do Trabalho apresentou-se como um marco regulatório de importância ímpar, “a mais avançada legislação social do mundo”, como difundiam os propagandistas da ditadura do Estado Novo, mas com aplicação bastante restrita, se considerados os indicadores econômicos da época.

Em um país com predominância de economia agropecuária, com a maior parte da mão de obra alocada no campo, e ainda presentes os efeitos dos séculos sob regime escravista, não se deve ignorar a exclusão legal de trabalhadores rurais e domésticos do âmbito de aplicação da CLT (artigo 7º). Portanto, os destinatários da nova proteção social seriam os trabalhadores urbanos: na indústria, comércio e serviços que, de acordo, com os dados do IBGE, na década de 1940, representavam entre 18% e 20% da força de trabalho no período.

Mudança com o advento da CLT

Até o advento da CLT, a legislação então existente não estabelecera conceitos autônomos para “empregado” ou “empregador”, sendo que as leis esparsas do período traziam referências a “operário”, “empregado” ou até mesmo “locador de serviços”, na expressão adotada no Código Civil de 1916 (artigos 1216 a 1236), mas, sem a preocupação de defini-los. Apesar disso, é possível extrair dos textos daquelas leis esparsas as características centrais do sujeito destinatário da incipiente proteção social: seria uma pessoa livre a prestar trabalho mediante salário por conta alheia, em contrato determinado ou indeterminado, de maior ou menor duração.

 

Tais contornos, ainda tímidos, foram verticalizados com a redação dos artigos 2º e 3º da CLT, onde constam, precisamente, as definições legais de empregador e empregado, respectivamente. O legislador ocupou-se, além de estabelecer os conceitos dos sujeitos do contrato de trabalho, em restringir o universo de atuação daqueles direitos recém-criados, pois, para se caracterizar uma relação empregatícia o prestador de serviços precisaria ser a pessoa natural que trabalha a empregador com pessoalidade, não-eventualidade, em caráter oneroso e de forma subordinada. A ausência de um desses elementos impediria reconhecer-se o contrato de trabalho como de emprego e, por consequência, retiraria o trabalhador do raio de proteção social do direito do trabalho.

Com o passar dos anos, o Estado suprimiu alguns dos vazios normativos deixados pela CLT, em especial, na década de 1970, quando surgiram as leis regulamentando o trabalho doméstico (1972) e rural (1973). No entanto, um expressivo contingente de trabalhadores que vivem da venda da sua força de trabalho, mas que não usufruem de proteção social alguma, por não serem considerados empregados, ante a ausência de, ao menos, um dos requisitos previstos na CLT, seguiu à margem do mundo de quem tem direitos.

Com exceções pontuais, como motoristas autônomos e representantes comerciais, nos mais de oitenta anos decorridos da publicação da CLT, o Estado brasileiro não se dispôs a tutelar relações de trabalho que não fossem as de emprego, com milhões de pessoas que — em razão do formato de sua contratação ou das condições em que o trabalho era executado — não conseguiam se encaixar nos requisitos restritivos do conceito de empregado. A opção estatal, portanto, foi de excluir quem não estivesse abrigado sob o contrato de emprego de qualquer modo de proteção social.

Mercado informal de trabalho

Direitos trabalhistas somente aos empregados. Aos demais trabalhadores, mesmo que vivendo da venda da força de trabalho por conta alheia, o Estado não se preocupou em regrar suas condições de trabalho ou, quando o fez, foi a partir de princípios e regras de outros ramos do direito. Em verdade, tais trabalhadores, em sua maioria, estão inseridos nas estatísticas do mercado informal de trabalho, que por sua grandeza e persistência histórica, pode-se dizer, é um fator estruturante da nossa sociedade.

A expressividade do mercado informal de trabalho brasileiro pode ser demonstrada pelo resultado da PNAD do segundo trimestre de 2025, que aponta para um número de 38.718.000 pessoas sujeitas ao trabalho informal e de 39.020.000, ou seja, quase equivalente, de empregados com carteira assinada. Devem ser adicionadas aos números da informalidade as praticamente 13 milhões de pessoas empregadas no setor privado, no entanto, sem o correto registro formal em carteira.

Importa recordar que um dos argumentos centrais dos defensores da reforma trabalhista residia na inclusão de quem estava fora do mercado formal de trabalho estimulada pela diminuição dos direitos sociais de quem estava dentro. Assim, para os ideólogos da flexibilização negativa do direito do trabalho, o excesso de direitos dos trabalhadores empregados seria o principal fator responsável pela informalidade. Como visto, decorridos quase oito anos da entrada em vigência da lei os números de pessoas excluídas do mercado formal de trabalho não arrefeceram.

Atualmente, são quase 52 milhões de pessoas, mais da metade do total de pessoas ocupadas, que não são beneficiadas pelas regras de proteção social do direito do trabalho. Evidentemente que, para o contingente sujeito à fraude trabalhista, formado por trabalhadores que deveriam ser contratados como empregados, mas se encontram em situação juridicamente irregular, não há necessidade de criação de novos direitos. Basta fazer-se cumprir as leis existentes!

Falta de proteção a quem está fora da CLT

No entanto, para quem está completamente à margem do mercado formal de trabalho, a legislação existente não é suficiente a lhe conceder proteção social, exatamente, porque a regulação social do trabalho no Brasil resulta de uma lógica maniqueísta: se é empregado aplica-se a CLT com todos os seus direitos previstos; se não é, nada lhe é devido, porque o trabalho não goza de qualquer proteção social pelo Estado.

Os trabalhadores autônomos, que prestam serviços a terceiros, com pessoalidade, não-eventualidade e onerosidade, não podem ser considerados empregados por não serem subordinados. No entanto, caso eles dependam economicamente do tomador do seu trabalho, isso aliado à presença dos demais elementos, não seria suficiente a lhes conferir direito à proteção social? Não precisam ser os mesmos direitos previstos aos empregados, mas, não parece haver sentido, além de ser extremamente injusto, que essas relações de trabalho sejam desreguladas, sem sequer oferecer garantias jurídicas mínimas aos trabalhadores.

Independentemente do destino que será conferido pelo Supremo Tribunal Federal ao debate acerca dos trabalhadores em plataforma, parece claro que a controvérsia repousa na dicotomia entre empregado-subordinado versus empreendedor-autônomo exatamente porque ordenamento jurídico trabalhista no país jamais se ocupou de regular relações contratuais senão de emprego, relegando às novas formas de trabalho surgidas a partir das inovações tecnológicas a solução maniqueísta do tudo ou nada. Ultimamente, nada. Diga-se.

Idêntico raciocínio mostra-se cabível aos trabalhadores cuja relação contratual não preenche o requisito legal da não-eventualidade. Desta forma, mesmo o trabalho sendo oneroso, pessoal e subordinado não acarretará vínculo de emprego e, como consequência, esta gama de trabalhadores não será destinatária de proteção social.

Diferenciação da força de trabalho

A realidade contratual de quem presta serviços em âmbito residencial para pessoa ou família, com frequência de três vezes na semana, é tão distinta de quem se submete às idênticas condições de trabalho uma ou duas vezes por semana? Existe uma diferenciação tão abrupta a justificar que no primeiro caso a pessoa que vive da venda de sua força de trabalho possa ser considerada empregada doméstica e, assim, detentora de direitos previstos na legislação, e no segundo caso, a pessoa não tenha direito a proteção social alguma?

A modificação do artigo 1º da Lei Complementar 150, de 1º de junho de 2015, com a redefinição de empregado doméstico, com intuito de abrigar no conceito quem presta serviços, ao menos, uma vez por semana, parece ser a maneira mais adequada e justa para incluir no mercado formal de trabalho um contingente expressivo de trabalhadores e, principalmente, trabalhadoras, hoje, na informalidade.

Todavia, ainda assim, persistiriam desprotegidas relações de trabalho envolvendo partes expressivas de trabalhadores eventuais, tais como, aqueles cujo lapso temporal entre uma prestação de serviços e outra ao mesmo tomador é grande suficientemente para se compreender por inexistir o contrato de emprego, em que pese possa até haver continuidade.

Estes profissionais — não proprietários dos meios de produção, que trabalham por conta alheia, em grande parte das vezes, subordinados a quem lhes remunera e que laboram de uma a duas vezes ao mês, as vezes com menor frequência — também deveriam ter suas relações de trabalho reguladas pelo Estado, com previsão em lei de proteção social em patamar jurídico diferente dos empregados, mas em formato diverso do contrato intermitente, criado com a reforma trabalhista, cuja eficiência para impulsionar a migração para o mercado formal de trabalho mostrou-se nula.

Ressignificação do conceito de empregado

Com certeza, a ressignificação do conceito de empregado, para torná-lo algo menos restritivo e, como consequência, mais inclusivo, importaria em uma modificação estrutural e mais impactante no direito do trabalho brasileiro, todavia, não aparentam existir condições objetivas e subjetivas para tanto. Não, no atual momento histórico.

A criação de direitos sociais para regular relações de trabalho, hoje, esquecidas e desprotegidas, embora não represente qualquer superação do modelo celetista, pois, ainda se manteriam intactos os rígidos contornos previstos nos artigos 2º e 3º da CLT, para caracterização de um contrato de emprego, seria capaz de promover a inclusão no mercado de trabalho formal de milhões de brasileiros e brasileiras relegados por décadas às estatísticas da informalidade.

 

CONJUR

 

http://conjur.com.br/2025-set-25/e-preciso-regular-relacoes-de-trabalho-para-garantir-protecao-social/