Jesualdo Almeida Junior
Este trabalho trata da regulamentação do trabalho infantojuvenil no ambiente digital.
O avanço tecnológico e a crescente inserção de crianças e adolescentes no ambiente digital impuseram ao ordenamento jurídico brasileiro a necessidade de atualização e de criação de marcos normativos específicos. Tradicionalmente, a proteção à infância e à juventude no Brasil encontra seu pilar no ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, lei 8.069/1990. Contudo, a complexidade do mundo virtual trouxe novos desafios, especialmente no que concerne à exposição a conteúdos nocivos e à exploração de atividades infantojuvenis.
Em resposta a essa realidade, o PL 2.628/22, conhecido como "ECA Digital", foi sancionado em 17 de setembro de 2025, tornando-se a lei 15.211/25. Esta nova legislação representa um passo significativo na disciplina dos direitos da infância e da adolescência no espaço digital (BRASIL, 1990; BRASIL, 2025).
O "ECA Digital": Avanços na proteção digital de crianças e adolescentes
O Estatuto Digital impôs uma série de obrigações rigorosas às plataformas e provedores de serviços digitais. Dentre elas, destacam-se a implementação de medidas de proteção desde a concepção dos sistemas ("privacy by design"), a criação de mecanismos confiáveis de verificação de idade, o oferecimento de ferramentas de supervisão parental, a rápida remoção de conteúdos ilícitos, o estabelecimento de regras mais estritas para o tratamento de dados pessoais de menores, a imposição de restrições à publicidade dirigida e a vinculação obrigatória de contas de menores de 16 anos a um responsável legal.
O descumprimento dessas obrigações acarreta sanções severas previstas no art. 35, que podem variar de advertências a multas expressivas, e até mesmo a suspensão ou proibição de atividades.
Apesar dos avanços, o "ECA Digital", não enfrentou de maneira direta e abrangente a complexa questão do trabalho infantil digital. Sua atuação limitou-se a vedar a monetização de conteúdos que retratem crianças e adolescentes em contextos erotizados ou sexualizados, sem disciplinar de forma ampla a inserção de menores como produtores regulares de conteúdo remunerado (BRASIL, 2025).
O próprio diploma legal definiu o conceito de monetização em seu art. 2º, inciso XI, como:
Remuneração direta ou indireta de usuário de aplicação de internet pela publicação, pela postagem, pela exibição, pela disponibilização, pela transmissão, pela divulgação ou pela distribuição de conteúdo, incluída receita por visualizações, assinaturas, doações, patrocínios, publicidade ou venda de produtos e serviços vinculados. (BRASIL, 2025).
Essa definição evidencia que a exploração econômica da imagem e da produção de conteúdo por crianças e adolescentes já se consolidou como uma prática social e econômica em plataformas como YouTube, Instagram e TikTok. Não obstante, a nova lei restringiu-se a tratar da questão em uma perspectiva limitada, como expressa o art. 23:
São vedados aos provedores de aplicações de internet a monetização e o impulsionamento de conteúdos que retratem crianças e adolescentes de forma erotizada ou sexualmente sugestiva ou em contexto próprio do universo sexual adulto. (BRASIL, 2025).
No entanto, essa vedação restringe-se apenas a tais situações, deixando de disciplinar a participação de menores em conteúdos não erotizados, ainda que monetizados. Essa restrição pontual gera uma lacuna normativa significativa, uma vez que a legislação deixou de disciplinar de forma abrangente a inserção de menores como produtores regulares de conteúdo remunerado que não ofendam o art. 23.
O regime jurídico aplicável e a necessidade de autorização judicial
Diante da lacuna do "ECA Digital" quanto ao trabalho infantil remunerado de modo geral, o regime jurídico já consolidado no Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990) permanece plenamente aplicável. Especificamente, o art. 149 do ECA estabelece a competência da autoridade judiciária para disciplinar, através de portaria, ou autorizar, por alvará, a participação de criança e adolescente em espetáculos públicos e seus ensaios, bem como a permanência em locais como estúdios cinematográficos, de teatro, rádio e televisão (BRASIL, 1990).
Tal disposição abrange, por analogia, a exploração digital remunerada da imagem de menores, enquadrando-a nos parâmetros legais já existentes para o trabalho artístico, o que demanda autorização judicial prévia.
A regra geral no Brasil estabelece a proibição do trabalho para menores de 16 anos, admitindo-se apenas a condição de aprendiz a partir dos 14 anos. Qualquer atividade laboral realizada por crianças abaixo dessa idade configura trabalho infantil, vedado pelo art. 7º, inciso XXXIII, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), e passível de responsabilização civil, trabalhista e até criminal. Para atividades noturnas, perigosas ou insalubres, a vedação se estende até os 18 anos incompletos.
Nesse cenário, o fenômeno contemporâneo dos influenciadores digitais mirins, que produzem e monetizam conteúdo em plataformas digitais, desafia a aplicação desse regime jurídico. Ainda que não se enquadrem diretamente nas hipóteses clássicas de trabalho previstas pela Consolidação das Leis do Trabalho, tais atividades possuem natureza econômica e se aproximam do trabalho artístico tradicional. Por essa razão, devem ser submetidas ao mesmo regime de proteção legal, o que implica a necessidade de autorização judicial prévia para sua realização, a fim de resguardar o melhor interesse da criança e do adolescente.
Desse modo, a atuação de crianças e adolescentes como influenciadores digitais remunerados exige autorização judicial prévia, nos termos do art. 149 do ECA (BRASIL, 1990). Essa autorização visa assegurar que a atividade não prejudique a frequência e o rendimento escolar, a saúde física e mental, o convívio familiar e o direito ao lazer.
O magistrado, ao analisar o pedido, deve avaliar a compatibilidade da atividade com a idade, maturidade e desenvolvimento psicológico do menor, além de garantir que a administração dos rendimentos seja feita em benefício da criança, muitas vezes por meio de depósito em conta vinculada, cuja movimentação depende de autorização judicial. Esse controle é crucial para evitar a exploração econômica prejudicial e assegurar que eventuais ganhos sirvam ao futuro do menor.
Este "trabalho artístico monetizado" gerará lucros. Neste passo, os pais ou responsáveis detêm o poder-dever de administrar os bens dos filhos, mas essa administração deve ser sempre em benefício do menor. Eles podem ser responsabilizados civil, administrativa e até criminalmente caso consintam, promovam ou se omitam diante da exploração do trabalho infantil digital. A proteção integral, consoante o art. 227 da Constituição Federal, é um dever tripartite da família, da sociedade e do Estado (BRASIL, 1988).
Adicionalmente, crianças e adolescentes que percebam rendimentos por atividades digitais monetizadas estão sujeitos às mesmas obrigações fiscais aplicáveis a qualquer contribuinte. Caso os valores ultrapassem os limites de isenção estabelecidos pela Receita Federal, haverá a necessidade de apresentação de declaração de Imposto de Renda, sem dispensa pela idade. Essa realidade exige orientação jurídica e acompanhamento financeiro para garantir a correta administração do patrimônio do menor.
Competência para a concessão do alvará judicial
A competência para fornecer o alvará judicial para que um menor de idade desenvolva trabalho digital monetizado, especialmente quando equiparado a trabalho artístico, é da Justiça Estadual, especificamente por meio da Vara da Infância e Juventude. Historicamente, as questões envolvendo o trabalho da criança e do adolescente eram direcionadas à Justiça Comum Estadual, ao Juiz de Menores (atual Juiz da Infância e Juventude).
Embora houvesse discussões anteriores e posicionamentos de TRTs que, após a EC 45/04, defendiam a competência da Justiça do Trabalho para apreciar pedidos de autorização de trabalho artístico infantil, o STF pacificou a controvérsia em 2018, ao julgar a ADI 5.326/DF, proposta pela Abert - Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão. Na ocasião, a Corte declarou a inconstitucionalidade dos atos normativos que atribuíram à Justiça do Trabalho tal competência, firmando que a autorização para o exercício de trabalho artístico e esportivo por crianças e adolescentes insere-se no âmbito de proteção do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, e não na CLT - Consolidação das Leis do Trabalho. Reconheceu-se que a análise desse tipo de requerimento transcende a esfera das relações trabalhistas, configurando matéria de jurisdição voluntária de natureza cível, a ser apreciada pela Vara da Infância e da Juventude, órgão dotado da expertise necessária para assegurar a proteção integral do menor (STF, ADI 5.326/DF, 2018).
Conclusão
O "ECA Digital" representa um avanço relevante ao reconhecer a monetização como atividade econômica e ao vedar a exploração sexualizada de crianças e adolescentes no ambiente digital. Todavia, deixou de enfrentar diretamente a realidade concreta do trabalho infantil digital em suas diversas manifestações, criando uma lacuna normativa que precisa ser suprida pela conjugação do ECA, da CLT, da Constituição Federal e da jurisprudência trabalhista.
Para que menores possam atuar como influenciadores digitais de maneira lícita e segura, é indispensável a autorização judicial prévia, acompanhada de respeito aos direitos fundamentais e de acompanhamento rigoroso pela Vara da Infância e Juventude, que deverá observar:
a) a configuração do trabalho de influenciadores mirins como atividade econômica, sujeita, por analogia ao trabalho artístico, à necessidade de alvará judicial (art. 149 do ECA);
b) os riscos presentes no ambiente digital, como a pressão contínua para produção de conteúdo, a exposição a ataques virtuais e assédio, o uso indevido da imagem, prejuízos à vida escolar e social, impactos psicológicos e a possibilidade de danos irreversíveis decorrentes da circulação ilimitada de imagens;
c) a finalidade do alvará de assegurar que a atividade não comprometa a frequência e o rendimento escolar, a saúde física e mental, o convívio familiar e o direito ao lazer;
d) os critérios de análise a serem observados pelo magistrado, tais como a compatibilidade da atividade com a idade, a maturidade e o desenvolvimento psicológico do menor, bem como a fixação de condições e limites claros para o exercício da atividade;
e) a gestão dos rendimentos obtidos, que devem ser destinados exclusivamente em benefício da criança ou adolescente, preferencialmente depositados em conta vinculada, com movimentação condicionada à autorização judicial;
f) a função protetiva do controle judicial, consistente em prevenir a exploração econômica indevida e garantir que eventuais ganhos sirvam efetivamente ao futuro do menor.
_______
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul. 1990.
BRASIL. Lei nº 6.533, de 24 de maio de 1978. Dispõe sobre a regulamentação das profissões de Artista e de Técnico em Espetáculos de Diversões. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 maio 1978.
BRASIL. Lei nº 15.211, de 17 de setembro de 2025. Dispõe sobre os direitos digitais de crianças e adolescentes, altera a Lei nº 8.069/1990, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 set. 2025.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5326/DF. Relator: Min. Alexandre de Moraes. Julgamento em 26 set. 2018. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 28 set. 2018.
Jesualdo Almeida Junior
Pós-Doutor pela Universidade de Coimbra. Pós-Doutorando pela USP. Mestre e Doutor em Direito. Professor. Sócio de Jesualdo Almeida Junior Advogados Associados. Pres. Conselheiro Estadual da OAB/SP.
MIGALHAS
https://www.migalhas.com.br/depeso/441055/eca-digital-e-trabalho-infantil-no-ambiente-virtual