Levi Rosa Tomé
O texto alerta para o enfraquecimento dos direitos trabalhistas e critica a perda do princípio da primazia da realidade nas relações de trabalho.
Leio em jornais eletrônicos, em grande destaque, que "Lula sanciona leis que ampliam licença e salário maternidade"1 ou que "Câmara aprova aumento da licença paternidade"2, ou ainda que "Ministro do Trabalho diz que governo apoia fim da escala 6 X 1"3.
Aliás, em breve pesquisa na legislação vigente verificam-se outros direitos trabalhistas bastante recentes e importantíssimos, como o contido na lei 14.611, de 3/7/23, que dispõe sobre "a igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens" e os da lei 14.457, de 21/9/22, que institui o "Programa Emprega + Mulheres", com dispositivos destinados à inserção e à manutenção de mulheres no mercado de trabalho de modo digno, com olhar para a proteção da mulher e daqueles que dela dependem.
Tais direitos, infelizmente, podem virar história antes mesmo de serem promulgados ou efetivamente implementados, o que, não obstante, pode ocorrer com a maioria dos direitos trabalhistas vigentes desde os primórdios da Consolidação das Leis do Trabalho.
Nos últimos tempos, tem-se aflorado certa tendência jurisprudencial, em especial modo nas cortes superiores, no sentido de valorizar, excessivamente no meu entender, o formalismo sobre o qual se pactuam as relações jurídicas, em detrimento dos fatos que se desenvolvem, efetivamente, no âmbito da realidade.
Essa compreensão das coisas no mundo do trabalho, com todo respeito, é de extrema gravidade e de extrema força derruidora para o próprio Direito do Trabalho.
Não é por acaso que o Direito do Trabalho tem no princípio da primazia da realidade uma de suas pilastras de sustentação. Alfredo J. Ruprecht, quando fala a respeito desse princípio, destaca que "o contrato de trabalho não é o que resulta de qualquer forma de acordo, mas o que surge da realização das tarefas"4, o que, por óbvio, tem uma razão de ser: - a disparidade econômica vigente num contrato de trabalho, que torna o trabalhador um coato em termos econômicos, e que, por isso, aceita submeter-se a formas contratuais fictícias e extremamente prejudiciais, em troca de sua fonte de subsistência.
Segundo Américo Plá Rodriguez, essa é uma ideia universal, no sentido de que "se somente se admitisse a realidade do contrato nos casos em que houvesse acordo escrito ou convenção verbal, se burlariam muitas das medidas de proteção adotadas pelo legislador."5
Não acredito, sinceramente, que alguém duvide disso.
Aliás, um tal aspecto do Direito do Trabalho é tão importante que a CLT, retumbantemente ignorada nestes tempos de "empreendedorismo exacerbado", no seu art. 9º, vigente desde a sua promulgação, diz que "serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação."
Perceba-se, por outro lado, que o art. 7º da CF prevê inúmeros direitos trabalhistas, cujo exercício fala de perto à própria cidadania da pessoa trabalhadora, e que somente se viabilizam por meio do contrato de trabalho.
Dito de outra forma: os direitos sociais previstos no Capítulo II do Título II da CF/88, dedicado à proteção social, em sua grande maioria, somente poderão ser exercidos a partir de um contrato de trabalho juridicamente reconhecido.
Na visão de João Leal Amado, "para o Direito do Trabalho releva, sobretudo, o fonómeno do trabalho assalariado, subordinado, prestado por conta alheia. E o mecanismo jurídico através do qual se realiza o acesso a esse trabalho subordinado é o do contrato individual de trabalho"6.
Com efeito, há uma centralidade do contrato de trabalho como instrumento de materialização dos direitos sociais. A CF/88, dizem Lorena Vasconcelos Porto e Augusto Grieco Sant'Anna Meirinho, ostenta conformação humanística capaz de impedir retrocessos sociais trazidos por legislação inferior que com ela se atrite e, dizemos nós, até mesmo retrocessos provenientes da interpretação inadequada da lei.
Na visão desses autores, citando Eduardo Marques Vieira de Araújo, "a Constituição estabeleceu um extenso rol de direitos fundamentais, os quais operam como anteparo contramajoritário"7, ou seja, em tempos de exasperação liberalizante prevalece, como antídoto à "tirania da maioria"8, o que se convencionou, serenamente, em tempos constituintes.
Desconsiderar o princípio da primazia da realidade; desconsiderar a centralidade do contrato de trabalho como canalizador de direitos sociais; desconsiderar a regra de ordem pública contida no art. 9º da CLT, é, em grande medida, afastar a aplicação da própria CF.
Comecei este pequeno artigo adotando, estrategicamente, como forma de chamar a atenção do leitor, um título forte, chamando direitos recém-criados ou ainda apenas cogitados de "direitos ilusórios".
Mas não há nisso nenhum exagero, infelizmente. Aliás, o que se perde com essa tempestade que se abate sobre o Direito do Trabalho é muito maior.
Alain Supiot, estudioso francês especialista em Direito do Trabalho e da segurança social, assevera que "na relação de trabalho, o trabalhador, ao contrário do empregador, não arrisca o património, arrisca a pele. E foi, desde logo, para salvar esta última que o direito do trabalho se constituiu."9
A proteção que se pretende com o Direito do Trabalho vai muito além de proporcionar à pessoa do trabalhador o salário adequado e a jornada limitada.
O Direito do Trabalho fala de perto à dignidade da pessoa humana. É sua função contemplar a proteção física do obreiro, na eliminação de riscos acidentários; assim como é dele uma espécie de efeito futuro, no seu desdobramento em Direito Previdenciário, de forma a assegurar àquele que se vale de seu trabalho para o sustento próprio e de sua família, uma espécie de "mínimo existencial" em termos de aposentadoria; e a isso somem-se prerrogativas sindicais, o direito de o trabalhador, por seu sindicato, poder valer-se da "autonomia privada coletiva" para alcançar melhores condições de trabalho.
Ao se ignorar o princípio da primazia da realidade, ao se atribuir valor exagerado a papéis assinados sob coação econômica, numa relação jurídica marcadamente desigual, desvirtua-se o Direito do Trabalho, desprotege-se o hipossuficiente, enfraquece-se o movimento sindical e implode-se o sistema previdenciário.
Os primeiros sinais desse gigantesco problema social já se vislumbram no horizonte. Em recente reportagem de respeitado jornal paulista, publicou-se que "5,5 milhões de CLTs migram direto para regime de PJs, e governo suspeita de fraude"10, destacando-se dessa matéria que o Ministério do Trabalho e Emprego "vê indícios de fraude nesse movimento e acredita que grande parte dos trabalhadores pode ter sido obrigada a se tornar PJ pelos empregadores a fim de recolher menos tributos."
Enfim...
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1 In, https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2025/09/30/lula-sanciona-leis-que-ampliam-licenca-e-salario- maternidade-o-que-muda.htm
2 In, https://g1.globo.com/saude/noticia/2025/11/05/camara-aprova-aumento-da-licenca-paternidade-quais-os- beneficios-da-ampliacao-segundo-estudos.ghtml
3 In, https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/09/25/ministro-do-trabalho-diz-que-governo-apoia-fim-da- escala-6x1-e-defende-pressao-sobre-o-congresso.ghtml
4 RUPRECHT, Alfredo J.. Os Princípios do Direito do Trabalho. São Paulo: LTr Editora, 1995, p. 81.
5 RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. Trad. GIGLIO, Wagner D. São Paulo: LTr Editora, 1993, p. 228.
6 AMADO, João Leal. Contrato de Trabalho: noções básicas. Coimbra: Almedina, 2018, p. 47.
7 MIESSA, Élisson; CARREIRA, Henrique, Org. A Reforma Trabalhista e seus Impactos. Salvador: Jus Podivm, 2018, p. 844.
8 TOCQUEVILLE, Alexis. Da Democracia na América. Campinas: Vide Editorial, 2019, p. 331
9 SUPIOT, Alain. Crítica do Direito do Trabalho. Lisboa: Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 2016, p. 92-93.
10 In, https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2025/10/55-milhoes-de-clts-migram-direto-para-regime-de-pjs-e- governo-suspeita-de-fraude.shtml
Levi Rosa Tomé
Desembargador do Trabalho pelo TRT-15.
MIGALHAS
https://www.migalhas.com.br/depeso/443919/crescem-os-direitos-trabalhistas-ilusorios